DOENÇA RARA EM ARARAS-GOIAS
Povoado em Goiás tem a maior taxa
mundial de doença rara de pele
Xeroderma pigmentoso distrito de Faina.
Enfermidade deixa o portador até mil
vezes mais vulnerável ao câncer.
Fernanda Borges
Do G1 GO, em Faina (GO)
Djalma Antônio Jardim já perdeu
várias partes do rosto por causa do xeroderma (Foto: Eraldo Peres/AP)
Portadores de uma doença rara de pele
sofrem com isolamento e falta de perspectivas de um futuro melhor em Araras,
povoado com cerca de 800 moradores que fica a 40 quilômetros de Faina, na
região noroeste de Goiás. Vinte e quatro pessoas têm o diagnóstico confirmado
de xeroderma pigmentoso, ou XP, fruto de uma mutação genética que gera
hipersensibilidade a luz e deixa os pacientes até mil vezes mais suscetíveis ao
câncer de pele do que as demais pessoas. A taxa de incidência registrada na
comunidade - de 1 para cada 40 habitantes - é a maior do mundo, segundo a
Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (AbraXP).
Nos Estados Unidos, por exemplo, essa
taxa é de um caso para cada 1 milhão de habitantes, compara a pedagoga e
presidente da AbraXP, Gleice Francisca Machado, 38 anos. “A concentração de um
grupo de portadores do xeroderma na proporção que temos aqui é raríssimo e faz
com que sejamos a maior comunidade com a doença do mundo. Muita gente não
desenvolveu sintomas ainda. Por isso, os números podem aumentar. Após a
constatação do fato, já recebemos diversos pesquisadores, até mesmo do
exterior, intrigados com o caso”, explicou.
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A doença é hereditária, ou seja,
apenas transmitida de pais para filhos, e ainda não existe uma cura. Sendo
assim, os portadores precisam se esconder dos raios ultravioletas (UVA e UVB) gerados
pelo sol, pois isso aumenta ainda mais a evolução das manchas na pele e o
aparecimento de tumores malignos, segundo informações da AbraXP. Os moradores
de Araras já passaram por centenas de procedimentos cirúrgicos e tiveram seus
rostos mutilados, sendo obrigados a usar próteses rudimentares, feitas a mão.
“Essa é uma realidade muito difícil
para o portador do xeroderma, pois na região em que vivemos o sol é muito forte
e a maioria trabalhava na roça. Sendo assim, após a confirmação do diagnóstico,
em 2010, elas passaram a tentar se prevenir um pouco mais. Mas ainda
enfrentamos muitos problemas”, afirmou Gleice.
A explicação para tamanha incidência
da doença na comunidade de Araras são os casamentos consanguíneos, ou seja,
entre parentes, que fazem com que o gene defeituoso hereditário seja
transmitido. “O primeiro caso na cidade aconteceu há mais de 150 anos. Três
famílias que se mudaram para a região nessa época tiveram casamentos de membros
entre si, o que gerou um grande parentesco entre os habitantes. Por isso,
muitos dos descendentes apresentaram os sintomas e morreram ao longo desses
anos, deformados, sem mesmo saber sobre o que sofriam”, diz a presidente da
associação.
Djalma Jardim conta que já foi vítima
de
preconceito (Foto: Fernanda Borges/G1)
Dificuldades
O dia a dia de um portador de
xeroderma exige tantos cuidados que eles permanecem isolados dentro de casa,
com portas e janelas fechadas, e só saem durante o dia para atividades
inadiáveis. Mesmo assim, precisam reforçar o uso do protetor solar, usar roupas
compridas, óculos escuros e chapéus.
O aposentado Djalma Antônio Jardim,
39 anos, luta contra a doença desde os sete anos de idade, quando as primeiras
pintas escuras surgiram na pele. Por conta do xeroderma, ele já perdeu o nariz,
o lábio superior, parte da bochecha e um dos olhos. No lugar, usa uma prótese.
A minha aparência choca demais as
pessoas (...) Então é muito difícil viver fora daqui"
Djalma Jardim, aposentado
“A minha aparência choca demais as
pessoas. Morei em Goiânia por dez anos e sentia muito preconceito. Por isso,
voltei pra cá, onde todos vivem a mesma realidade. Uma vez eu entrei em um
ônibus e sentei ao lado de uma pessoa, que levantou na hora. Acho que ela achou
que iria pegar e ficou com medo. Então, é muito difícil viver fora daqui
[Araras]”, conta o aposentado.
Segundo ele, as complicações mais
graves começaram quando ele tinha nove anos. “Nessa época, eu fiz a primeira
cirurgia, mas ninguém sabia direito explicar se era grave. Lembro que enquanto
fiquei internado me davam muitas injeções e eu fugia das enfermeiras para não
tomá-las, mas esse tratamento não surtiu efeito e as manchas continuaram a
aparecer. Desde então, já perdi as contas de quantas cirurgias fiz, mas chuto
que são mais de 50”, afirma.
Faina, Goiás
Ele tem outros seis irmãos, sendo que
três deles não possuem a doença. Outros três enfrentam, assim como ele, os
sintomas do xeroderma. O sétimo morreu em função de complicações do mal. “Ele
teve ferimentos graves, muitos tumores internos, e desistiu de lutar. Quando
morreu, estava todo deformado e não tinha mais forças para se alimentar. Por
isso, ficou deitado em uma cama e morreu seco, de fome e sede”, lamenta.
Djalma é um dos poucos que conseguiu
se aposentar pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) e também vive
de parte da renda obtida com uma pequena sorveteria que administra. Todos os
familiares moram no povoado e seus arredores, mas ele permanece sozinho em uma
casa. “Eu durmo, acordo, assisto televisão. Quando é preciso, saio, vou à igreja,
principalmente à noite. Mas faço tudo por aqui. Infelizmente, não posso ter uma
rotina como a das outras pessoas e sofro com isso desde pequeno, já que nunca
pude brincar do mesmo jeito que as outras crianças”.
Descoberta
O xeroderma pigmentoso começou a ser
descoberto pela comunidade em 2005, quando Gleice Francisca Machado percebeu
que seu filho Alisson Wendell Machado, na época com dois anos, estava com
algumas manchas na pele. Ela e o marido são primos de quarto grau. “Levei o
Alisson a uma dermatologista e disse que outras pessoas do povoado tinham a
mesma característica. Ela ficou assustada e disse que era impossível, pois se
tratava de uma doença rara. Aí, outras pessoas foram analisadas e constataram
de que todos tinham o mesmo diagnóstico”, lembra.
Gleice começou a pesquisar após seu
filho Alisson
ser diagnosticado (Foto: Fernanda
Borges/G1)
Desde então, Alisson tem uma rotina
muito diferente das crianças comuns. Atualmente com 11 anos, o menino ruivo e
com muitas sardas pelo corpo passa a maior parte do tempo dentro de casa e no
comércio da família. Além de um protetor aplicado a cada duas horas, ele também
precisa usar blusas de mangas compridas e calças. “É tudo muito difícil, pois
tenho que controlá-lo o tempo todo. Ele sabe que não pode ficar exposto ao sol,
mas é apenas uma criança e sofre por não poder ter a mesma rotina dos demais.
Uma das coisas que ele mais gosta é de cavalgadas, mas elas acontecem durante o
dia e não posso deixá-lo ir. Então, eu não sei o que fazer para tentar distraí-lo”,
conta a mãe.
Apesar de ter o diagnóstico e saber
que a única forma de tentar impedir a evolução da doença é a prevenção, Gleice
queria entender mais sobre a doença. Ela passou a pesquisar sobre o tema e o
trabalho resultou na elaboração do livro “Nas Asas da Esperança”, que relata o
sofrimento diário dos portadores de xeroderma. “As dificuldades enfrentadas por
essas pessoas são incontáveis. Elas precisam viver em um ambiente adaptado, com
luz especial, e precisam de acompanhamento médico constante. Por isso, decidi
que precisava agir e criei uma associação para a cidade, que mais tarde virou
nacional, para lutar pelo direito delas”.
Não podemos ficar esquecidos aqui,
pois as pessoas continuam morrendo"
Gleice Machado, presidente da AbraXP
Com o apoio do Projeto Rondon,
coordenado pelo Ministério da Defesa, e do Ministério Público Estadual de Goiás
(MP-GO), Gleice conseguiu formalizar a AbraXP em 2010. Desde então, a
associação, que tem portadores filiados em estados como São Paulo, Rio de Janeiro,
Santa Catarina e Bahia, busca melhorias para a comunidade, desde o fornecimento
de protetores solares até as consultas médicas periódicas. “Nesses quatro anos
de luta, já conseguimos muitas coisas, mas ainda falta muito. Uma das
conquistas foi obter o acompanhamento dos portadores no Hospital Geral de
Goiânia [HGG], onde foi criado um laboratório especializado em xeroderma”,
afirma.
Uma vez por semana os pacientes
viajam para Goiânia para acompanhamento médico. Após diversos pedidos, a AbraXP
conseguiu que o governo estadual faça o transporte dos portadores. “O grupo sai
daqui por volta das 2h da madrugada e chega à capital pouco depois das 5h. Tudo
isso porque eles não podem ficar expostos ao sol. Então, viajam durante a
noite. Depois do atendimento, esperam o dia todo no hospital pelo período
noturno, quando podem retornar para casa”, conta Gleice.
Para a presidente da AbraXP, o
acompanhamento médico em Goiânia é uma das maiores vitória para os portadores
de xeroderma, mas ainda existe muito a ser feito. “Não podemos ficar esquecidos
aqui, pois as pessoas continuam morrendo. O governo tem que nos ajudar, não só
auxiliando essas pessoas com uma pensão, mas também adaptando as casas, escolas
e ambientes em que elas precisam estar”.
Outra luta da associação é conseguir
que os portadores de xeroderma recebam aposentadoria pelo INSS. “Infelizmente,
temos poucos casos de pessoas que conseguiram o benefício. Como não existe uma
lei e muitas informações sobre a gravidade da doença, muitos médicos não entendem
que elas não podem exercer atividades ao ar livre e que não restam muitas
atividades remuneradas em Araras, além do trabalho rural”, afirmou.
Povoado de Araras costuma ter ruas
vazias durante o dia, com casas fechadas (Foto: Fernanda Borges/G1)
Uma esperança para os portadores foi
a criação da Portaria nº 199 de 30 de janeiro de 2014, do Ministério da Saúde,
que estabelecem diretrizes para assistência às pessoas com doenças raras no
âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). "Essa medida instituiu desde o acompanhamento
médico até incentivos financeiros para custeio dos tratamentos. Esperamos que
muita coisa possa mudar a partir de agora. Essa é a esperança dessa
comunidade", ressaltou Gleice.
Acompanhamento
Desde 2010, os portadores de
xeroderma fazem o acompanhamento com médicos especialistas no HGG. As consultas
são realizadas uma vez por semana. A dermatologista que coordena o tratamento,
Sulamita Costa Wirth Chaibub, esclareceu ao G1 que a prevenção ainda é a melhor
alternativa para controlar o avanço da doença.
“Os pacientes têm sido acompanhados
com rigor na prevenção dos tumores com uso de filtros solares associados a uma
enzima, a fotoliase, agente quimiopreventivo, com ação reparadora do DNA
lesado. Comumente, existem quatro tipos de lesões malignas ou pré-malignas. Nas
lesões pré-malignas e em tipo de tumor maligno, podemos aplicar algumas
medicações locais, que é o caso do imiquimode. Nos outros dois tipos de tumores
mais graves, a cirurgia é o tratamento. Na verdade, o tratamento do xeroderma
pigmentoso ainda se baseia na prevenção e na retirada dos tumores o mais breve
possível, com exames periódicos”, afirmou.
Segundo Sulamita, existem alguns
estudos em andamento para tentar desvendar a cura para a doença, mas ainda nada
de imediato. “Pelas pesquisas atuais, a perspectiva futura de cura deverá se
dar ao nível do rearranjo genético. Mas isso ainda deve demorar. Também existem
alguns produtos em fase de estudos, como mebutato de ingenol, resiquimode,
galato epigalocatequina, ácido betulínico e piroxicano, que estão sendo
testados no mundo com resultados promissores em alguns tipos de lesões”,
explicou a dermatologista.
Deidi Freire de Andrade, de 45 anos,
luta contra a doença desde os sete anos (Foto: Fernanda Borges/G1)
No HGG, além de análise do avanço da
doença, os pacientes são encaminhados para outras especialidades, de acordo com
a necessidade. Quando os tumores são identificados e existe a necessidade da cirurgia,
eles são encaminhados também para o Hospital Araújo Jorge, referência no
tratamento do câncer em Goiás.
“Todo esse apoio que recebemos é
fundamental, mas ainda precisamos de mais assistência. Um dos exames que eles
precisam com frequência é a dermatoscopia, que analisa o aumento das manchas,
mas o HGG não tem o equipamento para tal. Com isso, os pacientes precisam pagar
por ele na rede particular e nem todos têm condições”, conta Gleice.
Procurado pelo G1, o diretor-técnico
do HGG, Rafael Nakamura, informou que o Instituto de Desenvolvimento
Tecnológico e Humano (Idtech), que administra o hospital, acompanha os
pacientes com xeroderma antes mesmo da criação do ambulatório especializado.
“Nós também temos outra frente, que é o Projeto Rondon, que monitora a situação
dessas pessoas e ajudaram na criação da associação. Sendo assim, sabemos das
dificuldades enfrentadas por eles e buscamos medidas para tentar melhorar a
qualidade de vida delas. Uma delas foi a criação de uma regulação, que
determina o atendimento prioritário delas no HGG”, explicou.
Sobre o exame citado, Nakamura afirma
que ele é feito com um equipamento importado, que ajuda a detectar lesões na
pele imperceptíveis a olho nu. “Já estamos fazendo cotação para aquisição do
aparelho e esperamos que o mais breve possível ele possa atender os pacientes”,
disse.
Cláudia Sebastiana mostra pele escura
por causa
do xeroderma (Foto: Fernanda
Borges/G1)
Falta de renda
Conseguir trabalhar e se sustentar é
uma das maiores dificuldades de quem tem xeroderma. Deidi Freire de Andrade, 45
anos, conta que foi obrigado a abandonar o trabalho rural por causa da doença.
Primo de Djalma Antônio Jardim, ele relata que os primeiros sintomas apareceram
aos sete anos de idade. “Desde então, já fiz mais de 100 procedimentos
cirúrgicos. Alguns mais simples, mas outros graves para a retirada de tumores,
que afetaram do meu nariz, céu da boca, até o olho. Este último perdi por causa
de reações da radioterapia”, relata.
Deidi é casado há 11 anos e tem duas
filhas de 10 e 7 anos. Até o momento, elas não apresentaram sintomas. “Meu pai
e minha mãe eram primos de primeiro grau e acredito que, por isso, tenho a
doença. Felizmente, a minha esposa não é do círculo familiar que vive aqui e
minhas filhas estão bem”, diz.
Por causa das lesões que sofreu, o
aposentado tem dificuldades para falar e apenas consegue ver de um olho, no
qual fez uma cirurgia recentemente. “O que sinto mais falta é de poder falar e
enxergar direito. Mas espero que encontrem uma cura ou pelo menos um tratamento
para amenizar a nossa dor”, concluiu.
Outra portadora de xeroderma, a dona
de casa Cláudia Sebastiana Jardim Cunha, 36 anos, diz que pensou muito em não
contribuir com a transmissão da doença aos filhos quando casou. “Procurei um
marido bem longe daqui, que não tinha nenhuma ligação de parentesco. Hoje tenho
dois filhos, de 14 e 15 anos, que não têm a doença, e agradeço a Deus por isso,
pois a nossa realidade é dura demais”, conta.
Cláudia, que é irmã de Djalma e prima
de Deidi, ainda não precisou fazer nenhum procedimento cirúrgico em função do
mal, mas acredita que isso se deve aos cuidados que toma. “Eu já vi muita gente
morrer aqui por conta disso, então passei a me cuidar mais e a ficar isolada
dentro de casa mesmo. Mas as dificuldades são grandes, pois nem mesmo uma
simples foto com flash podemos tirar. Como não temos perspectivas de cura, o
jeito é tentar tomar o máximo de cuidado mesmo”, afirma a dona de casa.
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