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ESTATISTICAS MUNDIAL


COM A PALAVRA IRMÃO RUBENS


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O PRINCIPE MAQUIAVEL O LIVRO LEIA OU BAIXE-O AQUI



O PRÍNCIPE
Maquiavel
AO MAGNÍFICO LORENZO DE MEDICI
NICOLÓ MACHIAVELLI
ÍNDICE
DOS PRINCIPADOS
Capítulo II. Dos principados hereditários
Capítulo III. Dos principados mistos
Capítulo IV. Por que o reino de Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou
contra seus sucessores após a morte deste
Capítulo V. De que modo se devam governar as cidades ou principados que,
antes de serem ocupados, viviam com as suas próprias leis
Capítulo VI. Dos principados novos que se conquistam com as armas próprias e
virtuosamente
Capítulo VII. Dos principados novos que se conquistam com as armas e fortuna
dos outros
Capítulo VIII. Dos que chegaram ao principado por meio de crimes
Capítulo IX. Do principado civil
Capítulo X. Como se devem medir as forças de todos os principados
Capítulo XI. Dos principados eclesiásticos
Capítulo XII. De quantas espécies são as milícias, e dos soldados mercenários
Capítulo XIII. Dos soldados auxiliares, mistos e próprios
Capítulo XIV. O que compete a um príncipe acerca da milícia(tropa)
Capítulo XV. Daquelas coisas pelas quais os homens, e especialmente os
príncipes, são louvados ou vituperados .
Capítulo XVI. Da liberalidade e da parcimônia
Capítulo XVII. Da crueldade e da piedade; se é melhor ser amado que temido, ou
antes temido que amado
Capítulo XVIII. De que modo os príncipes devem manter a fé da palavra dada
Capítulo XIX. De como se deva evitar o ser desprezado e odiado
Capítulo XX. Se as fortalezas e muitas outras coisas que a cada dia são feitas
pelos príncipes são úteis ou não
Capítulo XXI. O que convém a um príncipe para ser estimado
Capítulo XXII. Dos secretários que os príncipes têm junto de si
Capítulo XXIII. Como se afastam os aduladores
Capítulo XXIV. Por que os príncipes da Itália perderam seus estados
Capítulo XXV. De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se
lhe deva resistir
Capítulo XXVI. Exortação para procurar tomar a Itália e libertá-la das mãos dos
bárbaros
Carta de Machiavelli a Francesco Vettori, em Roma
O PRÍNCIPE
Costumam, o mais das vezes, aqueles que desejam conquistar as graças de um
Príncipe, trazer-lhe aquelas coisas que consideram mais caras ou nas quais o
vejam encontrar deleite, donde se vê amiúde serem a ele oferecidos cavalos,
armas, tecidos de ouro, pedras preciosas e outros ornamentos semelhantes,
dignos de sua grandeza. Desejando eu, portanto, oferecer-me a Vossa
Magnificência com um testemunho qualquer de minha submissão, não encontrei
entre os meus cabedais coisa a mim mais cara ou que tanto estime, quanto o
conhecimento das ações dos grandes homens apreendido através de uma longa
experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas as quais
tendo, com grande diligência, longamente perscrutado e examinado e, agora,
reduzido a um pequeno volume, envio a Vossa Magnificência.
E se bem julgue esta obra indigna da presença de Vossa Magnificência, não
menos confio que deva ela ser aceita, considerado que de minha parte não lhe
possa ser feito maior oferecimento senão o dar-lhe a faculdade de poder, em
tempo assaz breve, compreender tudo aquilo que eu, em tantos anos e com
tantos incômodos e perigos, vim a conhecer. Não ornei este trabalho, nem o enchi
de períodos sonoros ou de palavras pomposas e magníficas, ou de qualquer outra
figura de retórica ou ornamento extrínseco, com os quais muitos costumam
desenvolver e enfeitar suas obras; e isto porque não quero que outra coisa o
valorize, a não ser a variedade da matéria e a gravidade do assunto a tornaremno
agradável. Nem desejo se considere presunção se um homem de baixa e
ínfima condição ousa discorrer e estabelecer regras a respeito do governo dos
príncipes: assim como aqueles que desenham a paisagem se colocam nas
baixadas para considerar a natureza dos montes e das altitudes e, para observar
aquelas, se situam em posição elevada sobre os montes, também, para bem
conhecer o caráter do povo, é preciso ser príncipe e, para bem entender o do
príncipe, é preciso ser do povo. Receba, pois, Vossa Magnificência este pequeno
presente com aquele intuito com que o mando; nele, se diligentemente
considerado e lido, encontrará o meu extremo desejo de que lhe advenha aquela
grandeza que a fortuna e as outras suas qualidades lhe prometem. E se Vossa
Magnificência, das culminâncias em que se encontra, alguma vez volver os olhos
para baixo, notará quão imerecidamente suporto um grande e contínuo infortúnio.
CAPÍTULO I
DE QUANTAS ESPÉCIES SÃO OS PRINCIPADOS E DE QUE MODOS
SE ADQUIREM
(QUOT SINT GENERA PRINCIPATUUM ET QUIBUS MODIS ACQUIRANTUR)
Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os
homens, foram e são ou repúblicas ou principados. Os principados são: ou
hereditários, quando seu sangue senhorial é nobre há já longo tempo, ou novos.
Os novos podem ser totalmente novos, como foi Milão com Francisco Sforza, ou o
são como membros acrescidos ao Estado hereditário do príncipe que os adquire,
como é o reino de Nápoles em relação ao rei da Espanha. Estes domínios assim
obtidos estão acostumados, ou a viver submetidos a um príncipe, ou a ser livres,
sendo adquiridos com tropas de outrem ou com as próprias, bem como pela
fortuna ou por virtude.
DOS PRINCIPADOS
(De Principatibus)
CAPÍTULO II
DOS PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS
(DE PRINCIPATIBUS HEREDITARIIS)
Não cogitarei aqui das repúblicas porque delas tratei longamente em outra
oportunidade. Voltarei minha atenção somente para os principados, irei
delineando os princípios descritos e discutirei como devem ser eles governados e
mantidos. Digo, pois, que para a preservação dos Estados hereditários e
afeiçoados à linhagem de seu príncipe, as dificuldades são assaz menores que
nos novos, pois é bastante não preterir os costumes dos antepassados e, depois,
contemporizar com os acontecimentos fortuitos, de forma que, se tal príncipe for
dotado de ordinária capacidade sempre se manterá no poder, a menos que uma
extraordinária e excessiva força dele venha a privá-lo; e, uma vez dele destituído,
ainda que temível seja o usurpador, volta a conquistá-lo.
Nós temos na Itália, como exemplo, o Duque de Ferrara que não cedeu aos
assaltos dos venezianos em 1484 nem aos do Papa Júlio em 1510, apenas por
ser antigo naquele domínio. Na verdade, o príncipe natural tem menores razões e
menos necessidade de ofender: donde se conclui dever ser mais amado e, se não
se faz odiar por desbragados vícios, é lógico e natural seja benquisto de todos. E
na antigüidade e continuação do exercício do poder, apagam-se as lembranças e
as causas das inovações, porque uma mudança sempre deixa lançada a base
para a ereção de outra.
CAPÍTULO III
DOS PRINCIPADOS MISTOS
(DE PRINCIPATIBUS MIXTIS)
Mas é nos principados novos que residem as dificuldades. Em primeiro lugar, se
não é totalmente novo mas sim como membro anexado a um Estado hereditário
(que, em seu conjunto, pode chamar-se "quase misto"), as suas variações
resultam principalmente de uma natural dificuldade inerente a todos os
principados novos: é que os homens, com satisfação, mudam de senhor
pensando melhorar e esta crença faz com que lancem mão de armas contra o
senhor atual, no que se enganam porque, pela própria experiência, percebem
mais tarde ter piorado a situação. Isso depende de uma outra necessidade natural
e ordinária, a qual faz com que o novo príncipe sempre precise ofender os novos
súditos com seus soldados e com outras infinitas injúrias que se lançam sobre a
recente conquista; dessa forma, tens como inimigos todos aqueles que ofendeste
com a ocupação daquele principado e não podes manter como amigos os que te
puseram ali, por não poderes satisfazê-los pela forma por que tinham imaginado,
nem aplicar-lhes corretivos violentos uma vez que estás a eles obrigado; porque
sempre, mesmo que fortíssimo em exércitos, tem-se necessidade do apoio dos
habitantes para penetrar numa província. Foi por essas razões que Luís XII, rei de
França, ocupou Milão rapidamente e logo depois o perdeu, para tanto bastando
inicialmente as forças de Ludovico, porque aquelas populações que lhe haviam
aberto as portas, reconhecendo o erro de seu pensar anterior e descrentes
daquele bem-estar futuro que haviam imaginado, não mais podiam suportar os
dissabores ocasionados pelo novo príncipe.
Ë bem verdade que, reconquistando posteriormente as regiões rebeladas, mais
dificilmente se as perdem, eis que o senhor, em razão da rebelião, é menos
vacilante em assegurar-se da punição daqueles que lhe faltaram com a lealdade,
em investigar os suspeitos e em reparar os pontos mais fracos. Assim sendo, se
para que a França viesse a perder Milão pela primeira vez foi suficiente um Duque
Ludovico que fizesse motins nos seus limites, já para perdê-lo pela segunda vez
foi preciso que tivesse contra si o mundo todo e que seus exércitos fossem
desbaratados ou expulsos da Itália, o que resultou das razões logo acima
apontadas. Não obstante, tanto na primeira como na segunda vez, Milão foi-lhe
tomado.
As razões gerais da primeira foram expostas; resta agora falar sobre as da
segunda vez e ver de que remédios dispunha a França e de que meios poderá
valer-se quem venha a encontrar-se em circunstâncias tais, para poder manter-se
na posse da conquista melhor do que o fez esse país.
Digo, consequentemente, que estes Estados conquistados e anexados a um
Estado antigo, ou são da mesma província e da mesma língua, ou não o são:
Quando o sejam, é sumamente fácil mantê-los sujeitos, máxime quando não
estejam habituados a viver em liberdade, e para dominá-los seguramente será
bastante ter-se extinguido a estirpe do príncipe que os governava, porque nas
outras coisas, conservando-se suas velhas condições e não existindo alteração de
costumes, os homens passam a viver tranqüilamente, como se viu ter ocorrido
com a Borgonha, a Bretanha, a Gasconha e a Normandia que por tanto tempo
estiveram com a França, isto a despeito da relativa diversidade de línguas, mas
graças à semelhança de costumes facilmente se acomodaram entre eles. E quem
conquista, querendo conservá-los, deve adotar duas medidas: a primeira, fazer
com que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela de não alterar
nem as suas leis nem os impostos; por tal forma, dentro de mui curto lapso de
tempo, o território conquistado passa a constituir um corpo todo com o principado
antigo.
Mas, quando se conquistam territórios numa província com língua, costumes e leis
diferentes, aqui surgem as dificuldades e é necessário haver muito boa sorte e
habilidade para mantê-los. E um dos maiores e mais eficientes remédios seria
aquele do conquistador ir habitá-los. Isto tornaria mais segura e mais duradoura a
posse adquirida, como ocorreu com o Turco da Grécia, que a despeito de ter
observado todas as leis locais, não teria conservado esse território se para aí não
tivesse se transferido. Isso porque, estando no local, pode-se ver nascerem as
desordens e, rapidamente, podem ser elas reprimidas; aí não estando, delas
somente se tem notícia quando já alastradas e não mais passíveis de solução.
Além disso, a província conquistada não é saqueada pelos lugar-tenentes; os
súditos ficam satisfeitos porque o recurso ao príncipe se torna mais fácil, donde
têm mais razões para amá-lo, querendo ser bons, e para temê-lo, caso queiram
agir por forma diversa. Quem do exterior desejar assaltar aquele Estado, por ele
terá maior respeito; donde, habitando-o, o príncipe somente com muita dificuldade
poderá vir a perdê-lo.
Outro remédio eficaz é instalar colônias num ou dois pontos, que sejam como
grilhões postos àquele Estado, eis que é necessário ou fazer tal ou aí manter
muita tropa. Com as colônias não se despende muito e, sem grande custo, podem
ser instaladas e mantidas, sendo que sua criação prejudica somente àqueles de
quem se tomam os campos e as casas para cedê-los aos novos habitantes, os
quais constituem uma parcela mínima do Estado conquistado. Ainda, os assim
prejudicados, ficando dispersos e pobres, não podem causar dano algum,
enquanto que os não lesados ficam à parte, amedrontados, devendo aquietar-se
ao pensamento de que não poderão errar para que a eles não ocorra o mesmo
que aconteceu àqueles que foram espoliados. Concluo dizendo que estas
colônias não são onerosas, são mais fiéis, ofendem menos e os prejudicados não
podem causar mal, tornados pobres e dispersos como já foi dito. Por onde se
depreende que os homens devem ser acarinhados ou eliminados, pois se se
vingam das pequenas ofensas, das graves não podem fazê-lo; daí decorre que a
ofensa que se faz ao homem deve ser tal que não se possa temer vingança. Mas
mantendo, em lugar de colônias, forças militares, gasta-se muito mais, absorvida
toda a arrecadação daquele Estado na guarda aí destacada; dessa forma, a
conquista transforma-se em perda e ofende muito mais por que danifica todo
aquele país com as mudanças do alojamento do exército, incômodo esse que
todos sentem e que transforma cada habitante em inimigo: e são inimigos que
podem causar dano ao conquistador, pois, vencidos, ficam em sua própria casa.
Sob qualquer ponto de vista essa guarda armada é inútil, ao passo que a criação
de colônias é útil.
Deve, ainda, quem se encontre à frente de uma província diferente, como foi dito,
tornar-se chefe e defensor dos menos fortes, tratando de enfraquecer os
poderosos e cuidando que em hipótese alguma aí penetre um forasteiro tão forte
quanto ele. E sempre surgirá quem seja chamado por aqueles que na província se
sintam descontentes, seja por excessiva ambição, seja por medo, como viu-se
terem os etólios introduzido na Grécia os romanos que, aliás, em todas as outras
províncias que conquistaram, fizeram-no auxiliados pelos respectivos habitantes.
E a ordem das coisas é que, tão logo um estrangeiro poderoso penetre numa
província, todos aqueles que nela são mais fracos a ele dêem adesão, movidos
pela inveja contra quem se tornou poderoso sobre eles; tanto assim é que em
relação a estes não se torna necessário grande trabalho para obter seu apoio,
pois logo todos eles, voluntariamente, formam bloco com o seu Estado
conquistado. Apenas deve haver o cuidado de não permitir adquiram eles muito
poder e muita autoridade, podendo o conquistador, facilmente, com suas forças e
com o apoio dos mesmos, abater aqueles que ainda estejam fortes, para tornar-se
senhor absoluto daquela província. E quem não encaminhar satisfatoriamente
esta parte, cedo perderá a sua conquista e, enquanto puder conservá-la, terá
infinitos aborrecimentos e dificuldades.
Os romanos, nas províncias de que se assenhorearam, observaram bem estes
pontos: fundaram colônias, conquistaram a amizade dos menos prestigiosos, sem
lhes aumentar o poder, abateram os mais fortes e não deixaram que os
estrangeiros poderosos adquirissem conceito. Quero tomar como exemplo apenas
a província da Grécia. Os aqueus e os etólios tornaram-se amigos dos romanos;
foi abatido o reino dos macedônios e daí foi expulso Antíoco; mas nem os méritos
dos aqueus e dos etólios lhes asseguraram permissão para conquistar algum
Estado, nem a persuasão de Felipe logrou fazer com que os romanos se
tornassem seus amigos e não o diminuíssem, nem o poder de Antíoco conseguiu
fazer com que os mesmos o autorizassem a manter seu domínio naquela
província. Isso tudo ocorreu porque os romanos fizeram nesses casos aquilo que
todo príncipe inteligente deve fazer: não somente vigiar e ter cuidado com as
desordens presentes, como também com as futuras, evitando-as com toda a
cautela porque, previstas a tempo, facilmente se lhes pode opor corretivo; mas,
esperando que se avizinhem, o remédio não chega a tempo, e o mal já então se
tornou incurável. Ocorre aqui como no caso do tuberculoso, segundo os médicos:
no princípio é fácil a cura e difícil o diagnóstico, mas com o decorrer do tempo, se
a enfermidade não foi conhecida nem tratada, torna-se fácil o diagnóstico e difícil
a cura. Assim também ocorre nos assuntos do Estado porque, conhecendo com
antecedência os males que o atingem (o que não é dado senão a um homem
prudente), a cura é rápida; mas quando, por não se os ter conhecido logo, vêm
eles a crescer de modo a se tornarem do conhecimento de todos, não mais existe
remédio.
Contudo, os romanos, prevendo as perturbações, sempre as tolheram e jamais,
para fugir à guerra, permitiram que as mesmas seguissem seu curso, pois sabiam
que a guerra não se evita mas apenas se adia em benefício dos outros; por isso
mesmo, promoveram a guerra contra Felipe e Antíoco na Grécia, para evitar
terem de fazê-la na Itália e, no entanto, podiam ter evitado a luta naquele
momento, se o quisessem. Nem em momento algum lhes agradou aquilo que
todos os dias está nos lábios dos entendidos de nosso tempo, o desejo de gozar
do benefício da contemporização, mas sim apenas aquilo que resultava de sua
própria virtude e prudência: na verdade o tempo lança à frente todas as coisas e
pode transformar o bem em mal e o mal em bem.
Mas voltemos à França e examinemos se ela fez alguma das coisas que
expomos, falando eu de Luís e não de Carlos porque foi daquele que, por ter
mantido mais prolongado domínio na Itália, melhor se viram os progressos: e
vereis como ele fez o contrário que se deve fazer para conservar um Estado numa
província diferente.
O Rei Luís foi conduzido à Itália pela ambição dos venezianos que, por tal meio,
quiseram ganhar o Estado da Lombardia, Não desejo censurar o partido tomado
pelo rei; porque, querendo começar a pôr um pé na Itália e não tendo amigos
nesta província, sendo-lhe, ao contrário, fechadas todas as portas em razão do
comportamento do Rei Carlos, foi obrigado a servir-se daquelas amizades com
que podia contar: e ter-lhe-ia resultado bem escolhido esse partido, se nos outros
manejos não tivesse cometido erro algum. Conquistada, pois, a Lombardia, o rei
readquiriu prontamente aquela reputação que Carlos perdera: Gênova cedeu; os
florentinos tornaram-se seus amigos; o marquês de Mantua, o duque de Ferrara,
Bentivoglio, a senhora de Forli, o senhor de Faenza, de Pesaro, de Rimini, de
Camerino, de Piombino, os Luqueses, os Pisanos e os Sieneses, todos foram ao
seu encontro para tornarem-se seus amigos. Os venezianos puderam considerar
então a temeridade da resolução que haviam adotado, pois que, para conquistar
dois tratos de terra na Lombardia, fizeram o rei tornar-se senhor de dois terços da
Itália.
Considere-se agora com quanta facilidade podia o rei manter a sua reputação na
Itália se, observadas as normas já referidas, tivesse conservado seguros e
defendidos todos aqueles seus amigos que, por serem em grande número, fracos
e medrosos uns em relação à Igreja os outros face aos venezianos, precisavam
sempre estar com ele; por meio deles poderia, facilmente, ter-se assegurado
contra os que ainda se conservavam fortes.
Mas ele, apenas chegado a Milão, fez o contrário, dando auxilio ao papa
Alexandre para que ocupasse a Romanha. Nem percebeu que com essa
deliberação enfraquecia a si próprio, afastando os amigos e aqueles que se lhe
tinham lançado aos braços, enquanto engrandecia a Igreja acrescentando ao
poder espiritual, que lhe dá tanta autoridade, tamanha força temporal. Cometido
um primeiro erro, foi compelido a seguir praticando outros até que, para pôr fim à
ambição de Alexandre e evitar que este se tornasse senhor da Toscana, teve de
vir pessoalmente à Itália. Não lhe bastou ter tornado grande a Igreja e perder os
amigos; por querer o reino de Nápoles, dividiu-o com o rei da Espanha; sendo
primeiro o árbitro da Itália, aí colocou um companheiro para que os ambiciosos
daquela província e os descontentes com ele mesmo tivessem onde recorrer e,
em vez de deixar naquele reino um soberano a ele sujeito, tirou-o para, em seu
lugar, colocar um outro que pudesse expulsá-lo dali.
É coisa muito natural e comum o desejo de conquistar e, sempre, quando os
homens podem fazê-lo, serão louvados ou, pelo menos, não serão censurados;
mas quando não têm possibilidade e querem fazê-lo de qualquer maneira, aqui
está o erro e, consequentemente, a censura. Se a França, pois, podia assaltar
Nápoles com suas forças, devia fazê-lo; se não podia, não devia dividir esse reino.
E se a divisão que fez com os venezianas sobre a Lombardia mereceu desculpa
por ter com ela firmado pé na Itália, aquela merece censura em razão de não ser
justificada por essa necessidade.
Tinha, pois, Luís, cometido estes cinco erros: eliminou os menos fortes; aumentou
na Itália o prestígio de um poderoso; aí colocou um estrangeiro poderosíssimo;
não veio habitar no país; não instalou colônias.
Estes erros, contudo, poderiam não ter causado dano enquanto vivo ele fosse, se
não houvesse sido cometido o sexto erro, tomar os territórios aos venezianos. Na
verdade, se não tivesse tornado grande a Igreja nem introduzido a Espanha na
Itália, seria bem razoável e necessário enfraquecê-los; mas, tomados que foram
aqueles partidos, nunca deveriam consentir na ruína dos mesmos, pois, sendo
poderosos, teriam sempre mantido aquelas à distância da Lombardia, e isso
porque os venezianos jamais iriam consentir em qualquer manobra contra esse
Estado, a menos que eles se tornassem os senhores, da mesma forma que os
outros não iriam querer tomá-lo à França para dá-lo aos venezianos, ao mesmo
tempo que lhes faltava coragem para entrar em luta com estes e com a França. E
se alguém dissesse: o Rei Luís cedeu a Romanha a Alexandre e o Reino à
Espanha para fugir a uma guerra - respondo com as razões já anteriormente
expostas de que - nunca se deve deixar prosseguir uma crise para escapar a uma
guerra, mesmo porque dela não se foge mas apenas se adia para desvantagem
própria. E se alguns outros alegassem a palavra que o rei havia dado ao Papa,
qual a de realizar para ele aquela conquista em troca da dissolução de seu
casamento e do chapéu cardinalício para o arcebispo de Ruão - respondo com o
que mais adiante se dirá acerca da palavra dos príncipes e de como se a deve
respeitar.
Perdeu, pois, o Rei Luís a Lombardia por não ter respeitado nenhum dos
princípios observados por outros que dominaram províncias e quiseram conserválas.
Não há aqui milagre algum, mas é sim muito comum e razoável. E deste
assunto falei em Nantes ao arcebispo de Ruão, quando Valentino, assim
popularmente chamado César Bórgia, filho do Papa Alexandre, ocupava a
Romanha: porque, dizendo-me o cardeal de Ruão que os italianos não entendiam
de guerra, retruquei-lhe que os franceses não entendiam do Estado, pois que, se
de tal compreendessem, não teriam deixado que a Igreja alcançasse tanta
grandeza. E por experiência viu-se que a grandeza da Igreja e da Espanha na
Itália foi causada pela França, e a ruína desta foi acarretada por aquelas.
Disso se extrai uma regra geral que nunca ou raramente falha: quem é causa do
poderio de alguém arruina-se, por que esse poder resulta ou da astúcia ou da
força e ambas são suspeitas para aquele que se tornou poderoso.
CAPÍTULO IV
POR QUE O REINO DE DARIO, OCUPADO POR ALEXANDRE, NÃO
SE REBELOU CONTRA SEUS SUCESSORES APÓS A MORTE
DESTE
(CUR DARII REGNUM QUOD ALEXANDER OCCUPAVERAT A
SUCCESSORIBUS SUIS POST ALEXANDRI MORTEM NON DEFECIT)
Consideradas as dificuldades que devem ser enfrentadas para a conservação de
um Estado recém-conquistado, alguém poderia ficar pasmo ante o fato de que,
tendo se tornado senhor da Ásia em poucos anos, não apenas havia terminado
sua ocupação Alexandre Magno veio a morrer e, a despeito de parecer razoável
que todo aquele Estado devesse rebelar-se, seus sucessores o conservaram e
para tanto não encontraram outra dificuldade senão aquela que, por ambição
pessoal, nasceu entre eles mesmos. - Argumento: os principados de que se
conserva memória, têm sido governados de duas formas diversas: ou por um
príncipe, sendo todos os demais servos que, como ministros por graça e
concessão sua, ajudam a governar o Estado, ou por um príncipe e por barões, os
quais, não por graça do senhor mas por antigüidade de sangue, têm aquele grau
de ministros. Estes barões têm Estados e súditos próprios que os reconhecem por
senhores e a eles dedicam natural afeição. Os Estados que são governados por
um príncipe e servos, têm aquele com maior autoridade, porque em toda a sua
província não existe alguém reconhecido como chefe senão ele, e se os súditos
obedecem a algum outro, fazem-no em razão de sua posição de ministro e oficial,
não lhe dedicando o menor amor.
Os exemplos dessas duas espécies de governo são, nos nossos tempos, o Turco
e o rei de França. Toda a monarquia do Turco é dirigida por um senhor: os outros
são seus servos; dividindo o seu reino em sandjaks, para aí manda diversos
administradores e os muda e varia de acordo com sua própria vontade. Mas o rei
de França está em meio a uma multidão de antigos senhores que, nessa
qualidade, são reconhecidos pelos seus súditos e por eles amados: têm as suas
preeminências e não pode o rei privá-los das mesmas sem perigo para si próprio.
Quem tiver em mira, pois, um e outro desses governos, encontrará dificuldades
para conquistar o Estado Turco, mas, vencido que seja este, encontrará grande
facilidade para conservá-lo, Ao contrário, encontrar-se-á em todos os sentidos
maior facilidade para ocupar o Estado de França, mas grande dificuldade para
mantê-lo.
As razões da dificuldade em ocupar o reino do Turco decorrem de não poder o
atacante ser chamado por príncipes daquele reino, nem esperar, com a rebelião
dos que rodeiam o soberano, poder ter facilitada a sua empresa: é o que resulta
das razões referidas. Porque, sendo todos escravos e obrigados, são mais
dificilmente corruptíveis e, quando fossem subornados, pouco de útil poder-se-ia
esperar, visto não serem eles capazes de arrastar o povo atrás de si, pelos
motivos já mencionados. Logo, se alguém assaltar o Estado Turco, deve pensar
que irá encontrá-lo todo unido, convindo contar mais com suas próprias forças
que com as desordens dos outros. Mas, vencido que seja e uma vez desbaratado
em batalha campal de modo que não possa refazer os exércitos, não se deve
recear outra coisa senão a dinastia do príncipe; uma vez extinta esta, ninguém
mais resta que deva ser temido, já que os demais não gozam de prestígio junto ao
povo; e como o vencedor deste nada podia esperar antes da vitória, depois dela
não deve receá-lo.
O contrário ocorre nos reinos como o de França, por que com facilidade podes
invadi-lo em obtendo o apoio de algum barão do reino, pois que sempre se
encontram descontentes e os que desejam fazer inovações. Estes, pelas razões
referidas, podem abrir o acesso àquele Estado e facilitar a vitória. Esta, depois, se
desejares manter-te, arrasta atrás de si infinitas dificuldades, seja com aqueles
que te ajudaram, seja com os que oprimiste. Não é bastante extinguir a estirpe do
príncipe, pois permanecem aqueles senhores que se tornam chefes das novas
revoluções e, não podendo nem contentá-los nem exterminá-los, perde aquele
Estado tão logo surja a oportunidade.
Ora, se for considerado de que natureza era o governo de Dario, se o encontrará
semelhante ao reino do Turco. Para Alexandre foi necessário primeiro encurralá-lo
e desbaratá-lo em batalha campal sendo que, depois da vitória, estando morto
Dario, aquele Estado tornou-se seguro para Alexandre pelas razões acima
expostas. Seus sucessores, se tivessem sido unidos, poderiam tê-lo gozado
tranqüilamente, pois ali não surgiram outros tumultos que não os por eles próprios
provocados. Mas quanto aos Estados organizados como o da França, é
impossível possuí-los com tanta tranqüilidade. Dessa circunstância é que
nasceram as freqüentes rebeliões da Espanha, da França e da Grécia contra os
romanos; em decorrência do grande número de principados que havia naqueles
Estados e por todo o tempo em que perdurou a sua memória, os romanos
estiveram inseguros na posse daqueles domínios. Mas extinta a lembrança dos
principados, com o poder e a constância de sua autoridade, os romanos tornaramse
dominadores seguros. Puderam eles, também, combatendo mais tarde em
lutas internas, arrastar cada facção, para o seu lado, parte daquelas províncias,
segundo a autoridade que havia adquirido junto a elas; e essas províncias, por
não mais existir o sangue de seus antigos senhores, não reconheciam senão a
soberania dos romanos. Consideradas, pois, todas estas coisas, ninguém se
maravilhará da facilidade que Alexandre encontrou para conservar o Estado da
Ásia, e das dificuldades que foram arrostadas pelos outros para manterem o
conquistado, como Pirro e muitos outros. Isso não resultou da muita ou da pouca
virtude do vencedor, mas sim da diversidade de forma do objeto da conquista.
CAPÍTULO V
DE QUE MODO SE DEVAM GOVERNAR AS CIDADES OU
PRINCIPADOS QUE, ANTES DE SEREM OCUPADOS, VIVIAM COM
AS SUAS PRÓPRIAS LEIS
(QUOMODO ADMINISTRANDAE SUNT CIVITATES VEL PRINCIPATUS, QUI
ANTEQUAM OCCUPARENTUR, SUIS LEGIBUS VIVEBANT)
Quando aqueles Estados que se conquistam, como foi dito, estão habituados a
viver com suas próprias leis e em liberdade, existem três modos de conservá-los:
o primeiro, arruiná-los; o outro, ir habitá-los pessoalmente; o terceiro, deixá-los
viver com suas leis, arrecadando um tributo e criando em seu interior um governo
de poucos, que se conservam amigos, porque, sendo esse governo criado por
aquele príncipe, sabe que não pode permanecer sem sua amizade e seu poder, e
há que fazer tudo por conservá-los. Querendo preservar uma cidade habituada a
viver livre, mais facilmente que por qualquer outro modo se a conserva por
intermédio de seus cidadãos.
Como exemplos, existem os espartanos e os romanos. Os espartanos
conservaram Atenas e Tebas, nelas criando um governo de poucos; todavia,
perderam-nas. Os romanos, para manterem Cápua, Cartago e Numância,
destruíram-nas e não as perderam; quiseram conservar a Grécia quase como o
fizeram os espartanos, tornando-a livre e deixando-lhe suas próprias leis e não o
conseguiram: em razão disso, para conservá-la, foram obrigados a destruir muitas
cidades daquela província.
É que, em verdade, não existe modo seguro para conservar tais conquistas,
senão a destruição. E quem se torne senhor de uma cidade acostumada a viver
livre e não a destrua, espere ser destruído por ela, porque a mesma sempre
encontra, para apoio de sua rebelião, o nome da liberdade e o de suas antigas
instituições, jamais esquecidas seja pelo decurso do tempo, seja por benefícios
recebidos. Por quanto se faça e se proveja, se não se dissolvem ou desagregam
os habitantes, eles não esquecem aquele nome nem aquelas instituições, e logo,
a cada incidente, a eles recorrem como fez Pisa cem anos após estar submetida
aos florentinos.
Mas quando as cidades ou as províncias estão acostumadas a viver sob um
príncipe, extinta a dinastia, sendo de um lado afeitas a obedecer e de outro não
tendo o príncipe antigo, dificilmente chegam a acordo para escolha de um outro
príncipe, não sabem, enfim, viver em liberdade: dessa forma, são mais lerdas
para tomar das armas e, com maior facilidade, pode um príncipe vencê-las e
delas apoderar-se. Contudo, nas repúblicas há mais vida, mais ódio, mais desejo
de vingança; não deixam nem podem deixar esmaecer a lembrança da antiga
liberdade: assim, o caminho mais seguro é destruí-las ou habitá-las
pessoalmente.
CAPÍTULO VI
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS ARMAS
PRÓPRIAS E VIRTUOSAMENTE
(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ARMIS PROPRIIS ET VIRTUTE
ACQUIRUNTUR)
Não se admire alguém se, na exposição que irei fazer a respeito dos principados
completamente novos de príncipe e de Estado, apontar exemplos de grandes
personagens; por que, palmilhando os homens, quase sempre, as estradas
batidas pelos outros, procedendo nas suas ações por imitações, não sendo
possível seguir fielmente as trilhas alheias nem alcançar a virtude do que se imita,
deve um homem prudente seguir sempre pelas sendas percorridas pelos que se
tornaram grandes e imitar aqueles que foram excelentes, isto para que, não sendo
possível chegar à virtude destes, pelo menos daí venha a auferir algum proveito;
deve fazer como os arqueiros hábeis que, considerando muito distante o ponto
que desejam atingir e sabendo até onde vai a capacidade de seu arco, fazem mira
bem mais alto que o local visado, não para alcançar com sua flecha tanta altura,
mas para poder com o auxílio de tão elevada mira atingir o seu alvo.
Digo, pois, que no principado completamente novo, onde exista um novo príncipe,
encontra-se menor ou maior dificuldade para mantê-lo, segundo seja mais ou
menos virtuoso quem o conquiste. E porque o elevar-se de particular a príncipe
pressupõe ou virtude ou boa sorte, parece que uma ou outra dessas duas razões
mitigue em parte muitas dificuldades; não obstante, tem-se observado, aquele que
menos se apoiou na sorte reteve o poder mais seguramente. Gera ainda
facilidade o fato de, por não possuir outros Estados, ser o príncipe obrigado a vir
habitá-lo pessoalmente.
Para reportar-me àqueles que pela sua própria virtude e não pela sorte se
tornarem príncipes, digo que os maiores são Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu e
outros tais. Se bem que de Moisés não se deva cogitar por ter sido ele mero
executor daquilo que lhe era ordenado por Deus, contudo deve ser admirado
somente por aquela graça que o tornava digno de conversar com o Senhor. Mas
consideremos Ciro e os outros que conquistaram ou fundaram reinos: achareis a
todos admiráveis. E se forem consideradas suas ações e ordens particulares,
estas parecerão não discrepantes daquelas de Moisés que teve tão grande
preceptor. E, examinando as ações e a vida dos mesmos, não se vê que eles
tivessem algo de sorte senão a ocasião, que lhes forneceu meios para poder
adaptar as coisas da forma que melhor lhes aprouve; e, sem aquela oportunidade,
o seu valor pessoal ter-se-ia apagado e sem essa virtude a ocasião teria surgido
em vão.
Era necessário, pois, a Moisés, encontrar o povo de Israel no Egito, escravizado e
oprimido pelos egípcios, a fim de que aquele, para libertar-se da escravidão, se
dispusesse a segui-lo. Convinha que Rômulo não pudesse ser mantido em Alba,
fosse exposto ao nascer, para que se tornasse rei de Roma e fundador daquela
pátria. Era preciso que Ciro encontrasse os persas descontentes do império dos
medas, e estes estivessem amolecidos e efeminados pela prolongada paz. Não
poderia Teseu demonstrar sua virtude se não encontrasse os atenienses
dispersos. Essas oportunidades por tanto, fizeram esses homens felizes, e sua
excelente capacidade fez com que aquela ocasião fosse conhecida de cada um:
em conseqüência, sua pátria foi nobilitada e tornou-se felicíssima.
Os que, por suas virtudes, semelhantes às que aqueles tiveram, tornam-se
príncipes, conquistam o principado com dificuldade, mas com facilidade o
conservam; e os obstáculos que se lhes apresentam no conquistar o principado,
em parte nascem das novas disposições e sistemas de governo que são forçados
a introduzir para fundar o seu Estado e estabelecer a sua segurança. Deve-se
considerar não haver coisa mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a
conseguir, nem mais perigosa de manejar, que tornar-se chefe e introduzir novas
ordens. Isso porque o introdutor tem por inimigos todos aqueles que obtinham
vantagens com as velhas instituições e encontra fracos defensores naqueles que
das novas ordens se beneficiam. Esta fraqueza nasce, parte por medo dos
adversários que ainda têm as leis conformes a seus interesses, parte pela
incredulidade dos homens: estes, em verdade, não crêem nas inovações se não
as vêem resultar de uma firme experiência. Donde decorre que a qualquer
momento em que os inimigos tenham oportunidade de atacar, o fazem com calor
de sectários, enquanto os outros defendem fracamente, de forma que ao lado
deles se corre sério perigo.
É necessário, pois, querendo bem expor esta parte, examinar se esses
inovadores se baseiam sobre forças suas próprias ou se dependem de outros, isto
é, se para levar avante sua obra é preciso que roguem, ou se em realidade
podem forçar. No primeiro caso, sempre acabam mal e não realizam coisa
alguma; mas, quando dependem de si mesmos e podem forçar, então é que raras
vezes perigam. Daí resulta que todos os profetas armados venceram e os
desarmados fracassaram. Porque, além dos fatos apontados, a natureza dos
povos é vária, sendo fácil persuadi-los de urna coisa, mas difícil firmá-los nessa
persuasão. Convém, assim, estar preparado para que, quando não acreditarem
mais, se possa fazê-los crer pela força.
Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam conseguido fazer observar por longo
tempo as suas constituições se tivessem estado desarmados; como ocorreu nos
nossos tempos a Frei Girolamo Savonarola que fracassou nas suas reformas
quando a multidão começou a nele não mais acreditar, e ele não dispunha de
meios para manter firmes aqueles que haviam crido, nem para fazer com que os
descrentes passassem a crer. Por isso, têm grandes dificuldades no conduzir-se e
todos os perigos estão no seu caminho, convindo que os superem com o valor
pessoal; mas superado que os tenham, quando começam a ser venerados,
extintos aqueles que tinham inveja de sua condição, ficam poderosos, seguros,
honrados, felizes.
A tão altos exemplos, quero acrescentar um menor, mas que bem terá alguma
relação com aqueles e que julgo suficiente para todos os outros semelhantes: é
Hierão de Siracusa. Este, de particular, tornou-se príncipe de Siracusa; também
ele, da sorte somente conheceu a ocasião porque, sendo os siracusanos
oprimidos, o elegeram para seu capitão, donde mereceu ser feito príncipe. E foi
de tanta virtude, mesmo na vida privada, que quem escreveu a seu respeito,
disse:quod nihil illi deerat ad regnandum praeter regnum.
Extinguiu a velha milícia, organizou a nova, abandonou as antigas amizades,
conquistou novas; e, como teve amizades e soldados seus, pode, sobre tais
fundamentos, erigir as obras que desejou: tanto que custou-lhe muita fadiga para
conquistar e pouca para manter.
CAPÍTULO VII
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS ARMAS
E FORTUNA DOS OUTROS
(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ALIENIS ARMIS ET FORTUNA
ACQUIRUNTUR)
Aqueles que somente por fortuna se tornam de privados em príncipes, com pouca
fadiga assim se transformam, mas só com muito esforço assim se mantêm: não
encontram nenhuma dificuldade pelo caminho porque atingem o posto a vôo; mas
toda sorte de dificuldades nasce depois que aí estão. São aqueles aos quais é
concedido um Estado, seja por dinheiro, seja por graça do concedente: como
ocorreu a muitos na Grécia, nas cidades da Jônia e do Helesponto, onde foram
feitos príncipes por Dario, a fim de que as conservassem para sua segurança e
glória; como eram feitos, ainda, aqueles imperadores que, por corrupção dos
soldados, de privados alcançavam o domínio do Império.
Estes estão simplesmente submetidos à vontade e à fortuna de quem lhes
concedeu o Estado, que são duas coisas grandemente volúveis e instáveis: e não
sabem e não podem manter a sua posição. Não sabem, porque, se não são
homens de grande engenho e virtude, não é razoável que, tendo vivido sempre
em ambiente privado, saibam comandar; não podem, porque não têm forças que
lhes possam ser amigas e fiéis. Ainda, os Estados que surgem rapidamente,
como todas as demais coisas da natureza que nascem e crescem depressa, não
podem ter raízes e estruturação perfeitas, de forma que a primeira adversidade os
extingue; salvo se aqueles que, como foi dito, assim repentinamente se tornaram
príncipes, forem de tanta virtude que saibam desde logo preparar-se para
conservar aquilo que a fortuna lhes pôs no regaço, formando posteriormente as
bases que os outros estabeleceram antes de se tornar príncipes.
Destes dois citados modos de vir a ser príncipe, por virtude ou por fortuna, quero
apontar dois exemplos ocorridos nos dias de nossa memória: estes são Francisco
Sforza e César Bórgia. Francisco, pelos meios devidos e com grande virtude, de
privado tornou-se duque de Milão; e aquilo que com mil esforços tinha
conquistado, com pouco trabalho manteve. Por outro lado, César Bórgia, pelo
povo chamado Duque Valentino, adquiriu o Estado com a fortuna do pai e,
juntamente com aquela, o perdeu; isso não obstante fossem por ele utilizados
todos os meios e feito tudo aquilo que devia ser efetivado por um homem
prudente e virtuoso, para lançar raízes naqueles Estados que as armas e a
fortuna de outrem lhe tinham concedido. Porque, como se disse acima, quem não
lança os alicerces primeiro, com uma grande virtude poderá estabelecê-los
depois, ainda que se façam com aborrecimentos para o construtor e perigo para o
edifício. Se, pois, se considerarem todos os progressos do duque, ver-se-á ter ele
estabelecido grandes alicerces para o futuro poderio, os quais não julgo supérfluo
descrever, pois não saberia que melhores preceitos do que o exemplo de suas
ações poderia indicar a um príncipe novo; e se as suas disposições não lhe
aproveitaram, não foi por culpa sua, mas sim em resultado de uma extraordinária
e extrema má sorte.
Tinha Alexandre VI, ao querer tornar grande o duque seu filho, muitas dificuldades
presentes e futuras. Primeiro, não via meio de poder fazê-lo senhor de algum
Estado que não fosse Estado da Igreja; voltando-se para tomar um destes, sabia
que o duque de Milão e os venezianos não lho permitiriam, porque Faenza e
Rimini estavam já sob a proteção dos venezianos. Via além disto as armas da
Itália, e em especial aquelas de que poderia servir-se, encontrarem-se nas mãos
daqueles que deviam temer a grandeza do Papa; não podia fiar-se, assim,
pertencendo todas elas aos Orsíni e Colonna e seus partidários. Era, pois,
necessário que se perturbasse aquela organização dos Estados italianos e
fossem desarticulados os pertencentes àqueles, para poder assenhorear-se
seguramente de parte dos mesmos. Isso foi-lhe fácil, eis que encontrou os
venezianos que, levados por outras causas, tinham se posto a fazer com que os
franceses retornassem à Itália, ao que não somente não se opôs, como também
tornou mais fácil com a dissolução do primeiro matrimônio do Rei Luís. Passou,
portanto, o rei à Itália com a ajuda dos venezianos e consentimento de Alexandre:
nem bem era chegado a Milão, já o Papa dele obteve tropas para a conquista da
Romanha, a qual tornou-se possível em razão da reputação do rei. Tendo
ocupado a Romanha e batido os partidários dos Colonna, o duque, querendo
manter a conquista e avançar mais à frente, tinha duas coisas que tal lhe
impediam: uma, as suas tropas que não lhe pareciam fiéis, a outra, a vontade da
França; isto é, temia o duque que lhe falhassem as tropas dos Orsíni, das quais
se valera, não só impedindo-o de conquistar, como também tomando-lhe o
conquistado, bem como receava que o rei não deixasse de fazer-lhe o mesmo.
Dos Orsíni teve prova quando, depois da tomada de Faenza, assaltando Bolonha,
os viu irem friamente a esse assalto; acerca do rei, conheceu sua disposição
quando, tomado o ducado de Urbino, atacou a Toscana; o rei fê-lo desistir dessa
campanha. Em conseqüência de tal, o duque deliberou não mais depender das
armas e fortuna dos outros. Inicialmente, enfraqueceu as facções dos Orsíni e dos
Colonna em Roma; para tanto, atraiu para junto de si todos os adeptos dos
mesmos, que fossem gentis-homens, fazendo-os seus gentis-homens, dando-lhes
grandes estipêndios e os honrando. Segundo suas qualidades, com comandos e
governos; de forma que, em poucos meses, a afeição que mantinham pelas
facções foi extinta e voltou-se toda ela para o duque. Depois, esperou a ocasião
de eliminar os Orsíni, dispersos que já estavam os da casa Colonna, ocasião que
lhe surgiu bem e que ele melhor aproveitou; porque, tendo percebido os Orsíni,
tarde porém, que a grandeza do duque e da Igreja era a sua ruína, organizaram
uma conferência em Magione, no Perugino. Dessa reunião nasceram a rebelião
de Urbino, os tumultos da Romanha e infinitos perigos para o duque, o qual a
todos superou com o auxílio dos franceses.
E, readquirida a reputação, não confiando na França nem nas outras tropas
estrangeiras, para não as ter fortalecidas, socorreu-se da astúcia. E tão bem
soube dissimular seus sentimentos, que os Orsíni, por intermédio do Senhor
Paulo, reconciliaram-se com ele: para assegurar-se melhor deste intermediário, o
duque não deixou de dispensar-lhe cortesia de toda natureza, dando-lhe dinheiro,
roupas e cavalos; tanto assim que a simplicidade dos Orsíni levou-os a Sinigalia,
às mãos do duque. Eliminados, pois, estes chefes, transformados os partidários
dos mesmos em amigos seus, tinha o duque lançado muito boas bases para o
seu poderio, possuindo toda a Romanha com o ducado de Urbino, parecendo-lhe,
ainda, ter tornado amiga a Romanha e ganho para si todas aquelas populações
que começavam a experimentar o seu bem-estar.
E, porque esta parte é digna de ser conhecida e imitada pelos outros, não desejo
omiti-la. Tomada que foi a Romanha, encontrando-a dirigida por senhores
impotentes, os quais mais depressa haviam espoliado os seus súditos do que os
tinham governado, dando-lhes motivo de desunião ao invés de união, tanto que
aquela província era toda ela cheia de latrocínios, de brigas e de tantas outras
causas de insolência, o duque julgou necessário, para torná-la pacífica e
obediente ao poder real, dar-lhe bom governo. Por isso, aí colocou Ramiro de
Orco, homem cruel e solícito, ao qual deu os mais amplos poderes. Este, em
pouco tempo, tornou-a pacífica e unida, com mui grande reputação. Depois,
entendeu o duque não ser necessária tão excessiva autoridade, e isso porque não
duvidava pudesse vir a mesma a tornar-se odiosa; instalou um juízo civil no centro
da província, com um presidente excelentíssimo, onde cada cidade tinha o seu
advogado. E porque sabia que os rigorismos passados tinham dado origem a
algum ódio, para limpar os espíritos daquelas populações e conquistá-los
completamente, quis mostrar que, se alguma crueldade havia ocorrido, não
nascera dele, mas sim da triste e cruel natureza do ministro. E, servindo-se da
oportunidade, fez colocarem-no uma manhã, na praça pública de Casena, cortado
em dois pedaços, com um pau e uma faca ensangüentada ao lado. A ferocidade
desse espetáculo fez com que a população ficasse ao mesmo tempo satisfeita e
pasmada.
Mas voltemos ao ponto de partida. Digo que, encontrando-se o duque bastante
forte e relativamente garantido contra os perigos presentes, por ter-se armado a
seu modo e ter em boa parte dissolvido aquelas tropas que, próximas, poderiam
molestá-lo, restava-lhe, querendo prosseguir com as conquistas, o temor ao rei de
França, porque sabia como tal proceder não seria suportado pelo mesmo que,
tarde, havia se apercebido de seu erro. Começou, por isso, a procurar novas
amizades e a tergiversar com a França na incursão que os franceses fizeram no
reino de Nápoles, contra os espanhóis que assediavam Gaeta. A sua intenção era
garantir-se contra eles, o que ter-lhe-ia surtido pronto efeito se Alexandre tivesse
continuado vivo.
Esta foi a sua política quanto às coisas presentes.
Mas, quanto às futuras, ele tinha a temer, inicialmente, que um novo sucessor ao
governo da Igreja não fosse seu amigo e procurasse tomar-lhe aquilo que
Alexandre lhe dera; e pensou proceder por quatro modos: primeiro, extinguir as
famílias daqueles senhores que ele tinha espoliado, para tolher ao Papa aquela
oportunidade; segundo, conquistar todos os gentis-homens de Roma, como foi
dito, para poder com eles manter o Papa tolhido; terceiro, tornar o Colégio mais
seu o quanto possível; quarto, conquistar tanto poder antes que o pai morresse,
que pudesse por si mesmo resistir a um primeiro impacto. Destas quatro coisas, à
morte de Alexandre ele havia realizado três, estando a quarta quase terminada:
porque dos senhores despojados ele matou quantos pode alcançar e
pouquíssimos se salvaram; tinha conseguido o apoio dos gentis-homens romanos
e no Colégio possuía mui grande parte; e, quanto à nova conquista, resolvera
tornar-se senhor da Toscana, possuía já Perúgia e Piombino e havia tomado a
proteção de Pisa.
Como não mais precisasse ter respeito à França (que o desmerecera por estarem
já os franceses despojados do Reino pelos espanhóis, de forma que cada um
deles necessitava comprar a sua amizade), saltaria sobre Pisa. Depois disso,
Lucca e Ciena cederiam prontamente, parte por inveja dos florentinos, parte por
medo; os florentinos não teriam remédio: o que, se tivesse acontecido (deveria
ocorrer no mesmo ano em que Alexandre morreu), conferir-lhe-ia tantas forças e
tanta reputação que ele ter-se-ia mantido por si mesmo, não mais dependendo da
fortuna e das forças dos outros, mas sim de sua própria potência e virtude. Mas
Alexandre morreu cinco anos depois que ele começara a desembainhar a espada.
Deixou-o apenas com o Estado da Romanha consolidado, com todos os outros no
ar, em meio a dois fortíssimos exércitos inimigos e doente de morte.
Havia no duque tanta bravura indômita e tanta virtude, conhecia tão bem como se
conquistam ou se perdem os homens e talmente sólidos eram os alicerces que
assim em tão pouco tempo havia lançado, que, se não tivesse tido aqueles
exércitos sobre si, ou se estivesse são, teria vencido qualquer dificuldade. E que
os seus alicerces fossem bons, viu-se: por que a Romanha esperou-o mais de um
mês; em Roma, ainda que apenas meio vivo, esteve em segurança e, se bem os
Baglioni, Vitelli e Orsíni viessem a Roma, nada puderam fazer contra ele; se não
pode fazer papa quem queria, pelo menos evitou que o fosse quem ele não
queria. Mas, se por ocasião da morte de Alexandre ele tivesse estado são, tudo
lhe teria sido fácil. Disse-me ele, no dia em que foi eleito Júlio que havia cogitado
de tudo aquilo que podia acontecer morrendo o pai e para tudo encontrara
remédio, mas jamais havia pensado, além da morte de seu pai, que ele mesmo,
também, pudesse estar para morrer.
Relatadas, assim, todas as ações do duque, eu não saberia repreendê-lo; antes
penso que, como o fiz, deva ser proposto à imitação de todos aqueles que por
fortuna e com as armas dos outros subiram ao poder. Porque, tendo grande
ânimo e alta intenção, ele não podia portar-se de outra for ma; aos seus
desígnios, somente se opuseram a brevidade da vida de Alexandre e a sua
enfermidade, Quem, pois, julgar necessário, no seu principado novo, assegurar-se
contra os inimigos, adquirir amigos, vencer ou pela força ou pela fraude, fazer-se
amar e temer pelo povo, seguir e reverenciar pelos soldados, eliminar aqueles que
podem ou têm razões para ofender, ordenar por novos modos as instituições
antigas, ser severo e grato, magnânimo e liberal, extinguir a milícia infiel, criar
uma nova, manter a amizade dos reis e dos príncipes, de modo que beneficiem
de boa vontade ou ofendam com temor, não poderá encontrar exemplos mais
recentes que as ações do duque.
Somente se pode acusá-lo na criação de Júlio pontífice, onde má foi a eleição;
porque, como foi dito, não podendo fazer um papa de acordo com seu desejo, ele
podia impedir fosse feito quem não quisesse; e não devia jamais consentir no
papado daqueles cardeais que tivessem sido por ele ofendidos, ou que, tornados
papas, viessem a temê-lo. Na verdade, os homens ofendem ou por medo ou por
ódio. Os que ele ofendera eram, entre outros, San Piero ad Vincula, Colonna, San
Giorgio, Ascânio; todos os outros, tornados papas, tinham por que temê-lo, exceto
o de Ruão e os espanhóis; estes, por afinidade e por obrigações, aquele pelo
poder e por ter ao seu lado o reino da França. Conseqüentemente, o duque, antes
de tudo, devia criar para um espanhol e, não podendo, devia consentir que fosse
eleito o cardeal de Ruão e não o de San Piero ad Vincula. E quem acreditar que
nas grandes personagens os novos benefícios façam esquecer as velhas injúrias,
engana-se. Errou, pois, o duque nessa eleição, tornando-se ele mesmo a causa
de sua ruína final.
CAPÍTULO VIII
DOS QUE CHEGARAM AO PRINCIPADO POR MEIO DE CRIMES
(DE HIS QUI PER SCELERA AD PRINCIPATUM PERVENERE)
Mas, porque pode-se tornar príncipe ainda por dois modos que não podem ser
atribuídos totalmente à fortuna ou à virtude, não me parece acertado pô-los de
parte, ainda que de um deles se possa mais amplamente cogitar em falando das
repúblicas. Estes são, ou quando por qualquer meio criminoso e nefário se
ascende ao principado, ou quando um cidadão privado torna-se príncipe de sua
pátria pelo favor de seus concidadãos. E, falando do primeiro modo, apontarei
dois exemplos, um antigo e outro atual, sem entrar, contudo, no mérito desta
parte, pois penso seja suficiente, a quem de tal necessitar, apenas imitá-los.
Agátocles siciliano, não só de privada mas também de ínfima e abjeta condição,
tornou-se rei de Siracusa. Filho de um oleiro, teve sempre, no decorrer de sua
juventude, vida celerada; todavia, acompanhou seus atos delituosos de tanto vigor
de ânimo e de corpo que, tendo ingressado na milícia, em razão de atos de
maldade, chegou a ser pretor de Siracusa. Uma vez investido nesse posto, tendo
deliberado tornar-se príncipe e manter pela violência e sem favor dos outros
aquilo que por acordo de todos lhe tinha sido concedido, depois de acerca desse
seu desejo ter estabelecido acordo com Amilcar cartaginês, que se encontrava em
ação com os seus exércitos na Sicilia, reuniu certa manhã o povo e o senado de
Siracusa como se tivesse de deliberar sobre assuntos pertinentes à República e,
a um sinal combinado, fez que seus soldados matassem todos os senadores e os
mais ricos da cidade; mortos estes, ocupou e manteve o principado daquela
cidade sem qualquer controvérsia civil. E, se bem por duas vezes os cartagineses
tivessem com ele rompido e estabelecido assédio, não só pode defender a sua
cidade como ainda, tendo deixado parte de sua gente na defesa contra o cerco,
com o restante assaltou a África e em breve tempo libertou Siracusa do sítio
levando os cartagineses a extrema dificuldade: tiveram de com ele estabelecer
acordo e contentar-se com as possessões da África, deixando a Sicília para
Agátocles.
Quem considere, pois, as ações e a vida desse príncipe, não encontrará coisa, ou
pouca achará, que possa atribuir à fortuna: suas ações resultaram, como acima
se disse, não do favor de alguém mas de sua ascensão na milícia, obtida com mil
aborrecimentos e perigos, que lhe permitiu alcançar o principado e, depois,
mantê-lo com tantas decisões corajosas e arriscadas. Não se pode, ainda,
chamar virtude o matar os seus concidadãos, trair os amigos, ser sem fé, sem
piedade, sem religião; tais modos podem fazer conquistar poder, mas não glória.
Ademais, se se considerar a virtude de Agátocles no entrar e no sair dos perigos e
a grandeza de seu ânimo no suportar e superar as adversidades, não se achará
por que deva ser ele julgado inferior a qualquer dos mais excelentes capitães;
contudo, sua exacerbada crueldade e desumanidade, com infinitas perversidades,
não permitem seja ele celebrado entre os homens mais ilustres. Não se pode,
assim, atribuir à fortuna ou à virtude aquilo que sem uma e outra foi por ele
conseguido.
Nos nossos tempos, reinando Alexandre VI, Oliverotto de Fermo, tendo anos
antes ficado órfão de pai, foi criado por um tio materno de nome Giovanni
Fogliani; nos primeiros anos de sua juventude, foi encaminhado à vida militar sob
o comando de Paulo Vitelli, a fim de que, tomado daquela disciplina, atingisse
algum excelente posto da milícia. Morto Paulo, militou sob Vitellozzo, irmão
daquele, e em muito pouco tempo, por ser engenhoso, de físico e ânimo fortes,
tornou-se o primeiro homem de sua milícia. Mas, parecendo-lhe coisa servil o
estar sob as ordens de outrem, com a ajuda de alguns cidadãos de Fermo, aos
quais era mais cara a servidão que a liberdade de sua pátria, e com o favor de
Vitellozzo, pensou ocupar Fermo. E escreveu a Giovanni Fogliani dizendo que,
por ter estado muitos anos fora de casa, desejava ir visitá-lo e à sua cidade e
conhecer o seu patrimônio; e, como não tinha trabalhado senão para conquistar
honras, para que seus concidadãos vissem como não tinha gasto o tempo em
vão, queria chegar com pompa e acompanhado de cem cavalos de amigos e
servidores seus; pedia-lhe, pois, se servisse ordenar fosse ele recebido pelos
cidadãos de Fermo com todas as honras, o que não somente o dignificaria, mas
também a Fogliani, dado haver sido seu discípulo.
Não deixou Giovanni de despender esforços em favor de seu sobrinho: tendo feito
com que os moradores de Fermo o recebessem com honrarias, alojou-o em suas
casas. Aí, passados alguns dias e pronto para ordenar secretamente aquilo que
era necessário à sua futura perfídia, Oliverotto promoveu soleníssimo banquete
para o qual convidou Giovanni Fogliani e todos os principais homens de Fermo.
Consumadas que foram as iguarias e após todos os demais entretenimentos
usuais em semelhantes ocasiões, Oliverotto, com habilidade, abordou certos
assuntos graves, falando da grandeza do Papa Alexandre, de seu filho César e
dos empreendimentos dos mesmos. Tendo Giovanni e os demais respondido a
tais considerações, ele, repentinamente, ergueu-se dizendo ser aquilo assunto
para falar-se em lugar mais secreto, retirando-se para um cômodo onde Giovanni
e todos os outros foram ter com ele. Nem ainda tinham se assentado, de lugares
ocultos saíram soldados que mataram Giovanni e a todos os demais.
Depois desse homicídio, Oliverotto montou a cavalo, correu a cidade
acompanhado de seus homens e assediou em seu palácio o supremo magistrado;
em conseqüência, por medo, foram obrigados a obedecê-lo e formar um governo
do qual ele se fez príncipe. E, mortos todos aqueles que, por descontentes,
poderiam ofendê-lo, fortaleceu-se com novas ordens civis e militares de forma
que, no período de um ano em que reteve o principado, não somente esteve forte
na cidade de Fermo, como também se tornou causa de pavor para todas as
populações vizinhas. Teria sido difícil a sua destruição, como difícil foi a de
Agátocles, se não tivesse sido enganado por César Bórgia quando este, em
Sinigalia, como já se disse, aprisionou os Orsíni e os Vitelli. Ai, preso também ele,
foi estrangulado juntamente com Vitellozzo, mestre de suas virtudes e suas
perfídias, um ano após haver cometido o parricídio.
Poderia alguém ficar em dúvida sobre a razão por que Agátocles e algum outro a
ele semelhante, após tantas traições e crueldades, puderam viver longamente,
sem perigo, dentro de sua pátria e, ainda, defender-se dos inimigos externos sem
que os seus concidadãos contra eles tivessem conspirado, tanto mais notando-se
que muitos outros não conseguiram manter o Estado, mediante a crueldade, nos
tempos pacíficos e, muito menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que
isto resulte das crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se dizer
serem aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem instantaneamente
pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não se insiste mas sim se as
transforma no máximo possível de utilidade para os súditos; mal usadas são
aquelas que, mesmo poucas a princípio, com o decorrer do tempo aumentam ao
invés de se extinguirem. Aqueles que observam o primeiro modo de agir, podem
remediar sua situação com apoio de Deus e dos homens, como ocorreu com
Agátocles; aos outros torna-se impossível a continuidade no poder.
Por isso é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer
todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um
tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança
aos homens e conquistá-los com benefícios, Quem age diversamente, ou por
timidez ou por mau conselho, tem sempre necessidade de conservar a faca na
mão, não podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também
não podem ter confiança diante das novas e contínuas injúrias. Portanto, as
ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas,
ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para
que sejam melhor apreciados. Acima de tudo, um príncipe deve viver com seus
súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça variar: porque,
surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o
mal, e o bem que tu fizeres não te será útil eis que, julgado forçado, não trará
gratidão.
CAPÍTULO IX
DO PRINCIPADO CIVIL
(DE PRINCIPATU CIVILI)
Mas passando a outra parte, quando um cidadão privado, não por perfídia ou
outra intolerável violência, porém com o favor de seus concidadãos, torna-se
príncipe de sua pátria, o que se pode chamar principado civil (para tal se tornar,
não é necessária muita virtude ou muita fortuna, mas antes uma astúcia
afortunada) digo que se ascende a esse principado ou com o favor do povo ou
com aquele dos grandes. Porque em toda cidade se encontram estas duas
tendências diversas e isso resulta do fato de que o povo não quer ser mandado
nem oprimido pelos poderosos e estes desejam governar e oprimir o povo: é
destes dois anseios diversos que nasce nas cidades um dos três efeitos: ou
principado, ou liberdade, ou desordem.
O principado é constituído ou pelo povo ou pelos grandes, conforme uma ou outra
destas partes tenha oportunidade: vendo os grandes não lhes ser possível resistir
ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre eles e o fazem príncipe
para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao seu apetite; o povo, também,
vendo não poder resistir aos poderosos, volta a estima a um cidadão e o faz
príncipe para estar defendido com a autoridade do mesmo. O que chega ao
principado com a ajuda dos grandes se mantém com mais dificuldade daquele
que ascende ao posto com o apoio do povo, pois se encontra príncipe com muitos
ao redor a lhe parecerem seus iguais e, por isso, não pode nem governar nem
manobrar como entender.
Mas aquele que chega ao principado com o favor popular, aí se encontra só e ao
seu derredor não tem ninguém ou são pouquíssimos que não estejam preparados
para obedecer. Além disso, sem injúria aos outros, não se pode honestamente
satisfazer os grandes, mas sim pode-se fazer bem ao povo, eis que o objetivo
deste é mais honesto daquele dos poderosos, querendo estes oprimir enquanto
aquele apenas quer não ser oprimido. Contra a inimizade do povo um príncipe
jamais pode estar garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se
assegurar porque são poucos. O pior que pode um príncipe esperar do povo hostil
é ser por ele abandonado; mas dos poderosos inimigos não só deve temer ser
abandonado, como também deve recear que os mesmos se lhe voltem contra,
pois que, havendo neles mais visão e maior astúcia, contam sempre com tempo
para salvar-se e procuram adquirir prestígio junto àquele que esperam venha a
vencer. Ainda, o príncipe tem de viver, necessariamente, sempre com o mesmo
povo, ao passo que pode bem viver sem aqueles mesmos poderosos, uma vez
que pode fazer e desfazer a cada dia esse seu poderio, dando-lhes ou tirandolhes
reputação, a seu alvedrio.
E, para melhor esclarecer esta parte, digo que os grandes devem ser
considerados em dois grupos principais: ou procedem por forma a se obrigarem
totalmente à tua fortuna, ou não. Os que se obrigam e não são rapaces, devem
ser considerados e amados. Os que não se obrigam devem ser encarados de dois
modos: se fazem isso por pusilanimidade ou por natural defeito de espírito,
deverás servir-te deles, máxime que são bons conselheiros, porque na
prosperidade isso te honrará e na adversidade não precisarás temê-los. Mas
quando eles, ardilosamente, não se obrigam por ambição, é sinal que pensam
mais em si próprios do que em ti: desses deve o príncipe guardar-se temendo-os
como se fossem inimigos declarados, porque sempre, na adversidade, ajudarão a
arruiná-lo.
Deve, pois, alguém que se torne príncipe mediante o favor do povo, conservá-lo
amigo, o que se lhe torna fácil, uma vez que não pede ele senão não ser
oprimido. Mas quem se torne príncipe pelo favor dos grandes, contra o povo, deve
antes de mais nada procurar ganhar este para si, o que se lhe torna fácil quando
assume a proteção do mesmo. E, por que os homens, quando recebem o bem de
quem esperavam somente o mal, se obrigam mais ao seu benfeitor, torna-se o
povo desde logo mais seu amigo do que se tivesse sido por ele levado ao
principado. O príncipe pode ganhar o povo por muitas maneiras que, por variarem
de acordo com as circunstâncias, delas não se pode estabelecer regra certa,
razão pela qual das mesmas não cogitaremos.
Concluirei apenas que a um príncipe é necessário ter o povo como amigo, pois,
de outro modo, não terá possibilidades na adversidade. Nabis, príncipe dos
espartanos, suportou o assédio de toda a Grécia e de um exército romano coberto
de vitórias, contra eles defendendo sua pátria e seu Estado; bastou-lhe apenas,
sobrevindo o perigo, garantir-se contra poucos, o que não seria suficiente se
tivesse o povo como inimigo. E não surja alguém para refutar esta minha opinião
com aquele provérbio bastante conhecido de que, quem se apoia no povo firmase
na lama, porque o mesmo é verdadeiro somente quando um cidadão privado
estabelece bases sobre o povo e imagina que o mesmo vá libertá-lo quando
oprimido pelos inimigos ou pelos magistrados; neste caso seria possível sentir-se
freqüentemente enganado, como os Gracos em Roma e Messer Giórgio Scali em
Florença. Mas sendo um príncipe quem se apoie no povo, que possa mandar e
seja um homem de coragem, que não esmoreça nas adversidades, não careça de
armas e mantenha com seu valor e suas determinações alentado o povo todo,
jamais se sentirá por ele enganado e constatará ter estabelecido bons
fundamentos.
Amiúde esses principados periclitam quando estão para passar da ordem civil
para um governo absoluto, porque esses príncipes ou governam por si mesmos
ou por intermédio dos magistrados. Neste último caso a situação dos mesmos é
mais fraca e perigosa, porque dependem completamente da vontade dos
cidadãos prepostos à magistratura, os quais, principalmente nos tempos
adversos, podem tomar-lhes o Estado com grande facilidade, ou contrariando
suas ordens ou não lhes prestando obediência. E o príncipe não pode, nas
ocasiões de perigo, assumir em tempo a autoridade absoluta, porque os cidadãos
e os súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não estão,
naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações, havendo sempre,
ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas nas quais ele possa confiar.
Tal príncipe não pode fundar-se naquilo que observa nas épocas de paz, quando
os cidadãos precisam do Estado, porque então todos correm, todos prometem e
cada um quer morrer por ele enquanto a morte está longe; mas na adversidade,
no momento em que o Estado tem necessidade dos cidadãos, então poucos são
encontrados. E tanto mais é perigosa esta experiência, quanto não se a pode
fazer senão uma vez. Contudo, um príncipe hábil deve pensar na maneira pela
qual possa fazer com que os seus cidadãos sempre e em qualquer circunstância
tenham necessidade do Estado e dele mesmo, e estes, então, sempre lhe serão
fiéis.
CAPÍTULO X
COMO SE DEVEM MEDIR AS FORÇAS DE TODOS OS PRINCIPADOS
(QUOMODO OMNIUM PRINCIPATUUM VIRES PERPENDI DEBEANT)
Ao examinar as qualidades destes Estados, convém fazer uma outra
consideração, isto é, se um príncipe tem Estado tão grande e forte que possa,
precisando, manter-se por si mesmo, ou então se tem sempre necessidade da
defesa de outrem. Para esclarecer melhor esta parte, digo julgar como podendo
manter-se por si mesmos aqueles que podem, por abundância de homens e de
dinheiro, organizar um exército à altura do perigo a enfrentar e fazer face a uma
batalha contra quem venha assaltá-lo, assim como julgo necessitados da defesa
de outrem os que não podem defrontar o inimigo em campo aberto, mas são
obrigados a refugiar-se atrás dos muros da cidade, guarnecendo-os. Quanto ao
primeiro caso já foi falado e, futuramente, diremos o que for necessário;
relativamente ao segundo, não se pode aduzir algo mais do que exortar tais
príncipes a fortificarem e a proverem sua cidade, não se preocupando com o
território que a contorna. E quem tiver bem fortificada sua cidade e, acerca dos
outros assuntos, se tenha conduzido para com os súditos como acima foi dito e
abaixo se esclarecerá, será sempre assaltado com grande temor, porque os
homens são sempre inimigos dos empreendimentos onde vejam dificuldades, e
não se pode encontrar facilidade para atacar quem tenha sua cidade forte e não
seja odiado pelo povo.
As cidades da Alemanha gozam de grande liberdade, têm pouco território e
obedecem ao imperador quando assim querem, não temendo nem a este nem a
outro poderoso que lhes esteja ao derredor porque são de tal forma fortificadas
que todos pensam dever ser enfadonha e difícil sua expugnação. Na verdade,
todas têm fossos e muros adequados, possuem artilharia suficiente, conservam
sempre nos armazéns públicos o necessário para beber, comer e arder por um
ano; além disso, para manter a plebe alimentada sem prejuízo do povo, têm
sempre, em comum, por um ano, meios para lhe dar trabalho naquelas atividades
que sejam o nervo e a vida daquelas cidades e das indústrias das quais a plebe
se alimente. Têm em grande conceito os exercícios militares, a respeito dos quais
têm muitas leis de regulamentação.
Um príncipe, pois, que tenha uma cidade forte e não se faça odiar, não pode ser
atacado e, existindo alguém que o assaltasse, retirar-se-ia com vergonha, eis que
as coisas do mundo são assim tão variadas que é quase impossível alguém
pudesse ficar com os exércitos ociosos por um ano, a assediá-lo. A quem
replicasse que, tendo as suas propriedades fora da cidade e vendo-as a arder, o
povo não terá paciência e o longo assédio e a piedade de si mesmo o farão
esquecer o príncipe, eu responderia que um príncipe poderoso e afoito superará
sempre aquelas dificuldades, ora dando aos súditos esperança de que o mal não
será longo, ora incutindo temor da crueldade do inimigo, ora assegurando-se com
destreza daqueles que lhe pareçam muito temerários. Além disso, é razoável que
o inimigo deva queimar o país apenas chegado, nos tempos em que o ânimo dos
homens está ainda ardente e voluntarioso na defesa; por isso, o príncipe deve ter
pouca dúvida porque, depois de alguns dias, quando os ânimos estão mais frios,
os danos já foram causados, os males já foram sofridos e não há mais remédio;
então, os súditos vêm se unir ainda mais ao semi príncipe, parecendo-lhes que
este lhes deva obrigação, uma vez que suas casas foram incendiadas e suas
propriedades arruinadas para a defesa do mesmo. E a natureza dos homens é
aquela de obrigar-se tanto pelos benefícios que são feitos como por aqueles que
se recebem. Donde, em se considerando tudo bem, não será difícil a um príncipe
prudente conservar firmes, antes e depois do cerco, os ânimos de seus cidadãos,
desde que não faltem víveres nem meios de defesa.
CAPÍTULO XI
DOS PRINCIPADOS ECLESIÁSTICOS
(DE PRINCIPATIBUS ECLESIASTICIS)
Resta-nos somente, agora, falar dos principados eclesiásticos, nos quais todas as
dificuldades existem antes que se os possuam, eis que são adquiridos ou pela
virtude ou pela fortuna, e sem uma e outra se conservam, porque são sustentados
pelas ordens de há muito estabelecidas na religião; estas tornam-se tão fortes e
de tal natureza que mantêm os seus príncipes sempre no poder, seja qual for o
modo por que procedam e vivam. Só estes possuem Estados e não os defendem;
súditos, e não os governam; os Estados, por serem indefesos, não lhes são
tomados; os súditos, por não serem governados, não se preocupam, não pensam
e nem podem separar-se deles. Somente estes principados, pois, são seguros e
felizes. Mas, sendo eles dirigidos por razão superior, à qual a mente humana não
atinge, deixarei de falar a seu respeito,mesmo porque, sendo engrandecidos e
mantidos por Deus, seria obra de homem presunçoso e temerário dissertar a seu
respeito. Contudo, se alguém me perguntar donde provém que a Igreja, no poder
temporal, tenha chegado a tanta grandeza, pois que antes de Alexandre os
potentados italianos, e não apenas aqueles que eram ditos "potentados" mas
qualquer barão e senhor, mesmo que sem importância, pouco valor davam ao
poder temporal da Igreja, e agora um rei de França treme, ela pode expulsá-lo da
Itália e ainda logra arruinar os venezianos, apontarei fatos que, a despeito de
conhecidos, não me parece supérfluo reavivar em parte na memória.
Antes que Carlos, rei da França, invadisse a Itália, esta província encontrava-se
sob o domínio do Papa, dos venezianos, do rei de Nápoles, do duque de Milão e
dos florentinos. Estes potentados tinham de se haver com dois cuidados
principais: um, que nenhum estrangeiro entrasse na Itália com tropas; o outro, que
nenhum deles ocupasse mais Estado. Aqueles dos quais se tinha mais receio
eram o Papa e os venezianos. Para conter os venezianos tornou-se necessária a
união de todos os demais, como ocorreu na defesa de Ferrara; para deter o Papa,
serviam-se dos barões de Roma, eis que. estando divididos em duas facções,
Orsíni e Colonna, sempre existia motivo de discórdia entre eles e, estando de
arma em punho sob os olhos do pontífice, mantinham o pontificado fraco e
inseguro. Se bem surgisse, vez por outra, um Papa animoso, como foi Xisto, nem
a sua fortuna nem o seu saber puderam livrá-lo desses inconvenientes. A
brevidade da vida dos pontífices era a causa dessa situação, porque, nos dez
anos que, em média, vivia um Papa, somente com muita dificuldade podia ele
enfraquecer uma das facções; se, por exemplo, um deles tivesse quase
extinguindo os collonessi surgia um outro, inimigo dos Orsíni, que os fazia
ressurgir sem que tivesse tempo de liquidar os Orsíni. Isto tornava o poder
temporal do Papa pouco considerado na Itália.
Surgiu depois Alexandre VI que, de todos os pontífices que já existiram, foi o que
mostrou o quanto um Papa podia, com o dinheiro e as tropas, para adquirir maior
poder; e fez, com o uso do Duque Valentino como instrumento e com a
oportunidade da invasão dos franceses, todas aquelas coisas que relatei acima
com relação às ações do duque. Se bem seu intento não fosse o de tornar grande
a Igreja mas sim o duque, não obstante, tudo o que fez reverteu em favor da
grandeza da Igreja, a qual, após a sua morte, extinto o duque, se tornou herdeira
de sua obra. Veio depois o Papa Júlio e encontrou a Igreja grande, possuindo
toda a Romanha, reduzidos à impotência os barões de Roma e, pelas
perseguições de Alexandre, anuladas aquelas facções; encontrou, ainda, o
caminho aberto para acumular dinheiro, o que jamais havia sido feito antes de
Alexandre.
Júlio não só seguiu tais práticas, como as ampliou; pensou em conquistar
Bolonha, extinguir os venezianos e expulsar os franceses da Itália: todos esses
empreendimentos lhe saíram bem, e com tanto maior louvor quanto realizou tudo
isso para engrandecer a Igreja e não para favorecer algum cidadão particular.
Conservou, ainda, os partidos dos Orsíni e dos Colonna nas mesmas condições
em que os encontrara e, se bem entre eles houvesse algum chefe capaz de fazer
mudar a situação, duas coisas os mantiveram quietos: uma, a grandeza da Igreja,
que os atemorizava; a outra, não terem eles cardeais, os quais são os causadores
dos tumultos entre as facções. Nem em tempo algum ficarão quietas essas
partes, desde que possuam cardeais, pois estes sustentam os partidos dentro e
fora de Roma e os barões são forçados a defendê-los; assim, da ambição dos
prelados, nascem as discórdias e os tumultos entre os barões. Sua Santidade, o
Papa Leão, encontrou o pontificado potentíssimo e, espera-se, se aqueles que
referimos o fizeram grande pelas armas, este o fará ainda maior e mais venerado
pela bondade e suas outras infinitas virtudes.
CAPÍTULO XII
DE QUANTAS ESPÉCIES SÃO AS MILÍCIAS, E DOS SOLDADOS
MERCENÁRIOS
(QUOT SINT GENERA MILITIAE ET DE MERCENARIIS MILITIBUS)
Tendo falado detalhadamente de todas as espécies de principados, dos quais já
no início me propus comentar, e consideradas, em alguns pontos, as causas do
bem-estar e do mal-estar dos mesmos, mostrados que foram os modos pelos
quais muitos procuraram adquiri-los e conservá-los, resta-me agora falar de forma
genérica dos meios ofensivos e defensivos que em cada um dos citados
principados possam ocorrer, Dissemos acima como é necessário a um príncipe ter
bons fundamentos; do contrário, necessariamente, cairá em ruína. Os principais
fundamentos que os Estados têm, tanto os novos como os velhos ou os mistos,
são as boas leis e as boas armas. E, como não pode haver boas leis onde não
existam boas armas e onde existam boas armas convém que haja boas leis,
deixarei de falar das leis e me reportarei apenas às armas.
Digo, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado, ou são
suas próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e as
auxiliares são inúteis e perigosas e, se alguém tem o seu Estado apoiado nas
tropas mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas,
ambiciosas, indisciplinadas, infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os
inimigos; não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína,
quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra, pelos
inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão que as
mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo, o qual não é suficiente para
fazer com que queiram morrer por ti. Querem muito ser teus soldados enquanto
não estás em guerra, mas, quando esta surge, querem fugir ou ir embora.
Para persuadir de tais coisas não me é necessária muita fadiga, eis que a atual
ruína da Itália não foi causada por outro fator senão o de ter, por espaço de
muitos anos, repousado sobre as armas mercenárias. Elas já fizeram algo em
favor de alguns e pareciam galhardas nas lutas entre si; mas, quando surgiu o
estrangeiro, mostraram-lhe o que eram. Por isso foi possível a Carlos, rei de
França, tomar a Itália com o giz; e quem disse que a causa disso foram os nossos
pecados, dizia a verdade, se bem que esses pecados não fossem aqueles que ele
julgava, mas sim esses que eu narrei, e como eram pecados de príncipes, estes
sofreram o castigo.
Quero demonstrar melhor a infeliz qualidade destas tropas. Os capitães
mercenários ou são homens excelentes, ou não: se o forem, não podes confiar,
porque sempre aspirarão à própria grandeza, abatendo a ti que és o seu patrão,
ou oprimindo os outros contra a tua vontade; mas se não forem grandes chefes,
certamente te levarão à ruína. E, se for respondido que qualquer um que detenha
as forças nas mãos fará isso, mercenário ou não, responderei dizendo como as
armas devem ser usadas por um príncipe ou por uma República. O príncipe deve
ir pessoalmente com as tropas e exercer as atribuições do capitão: a República
deve mandar seus cidadãos e, quando enviar um que não se revele valente, deve
substitui-lo, quando animoso deve detê-lo com as leis para que não avance além
do limite. Por experiência se vêem príncipes sós e repúblicas armadas fazerem
grandes progressos, enquanto se vêem tropas mercenárias não causarem mais
do que danos. Ainda, uma República armada de tropas próprias se submete ao
domínio de um seu cidadão com muito maior dificuldade do que aquela que esteja
protegida por tropas mercenárias ou auxiliares.
Roma e Esparta foram durante muitos séculos armadas e livres, Os suíços são
armadíssimos e libérrimos, Das armas mercenárias antigas, podemos citar como
exemplo os cartagineses, os quais quase foram oprimidos por seus soldados
mercenários, ao fim da primeira guerra com os romanos, a despeito de terem por
chefes os próprios cidadãos de Cartago. Felipe da Macedônia foi pelos tebanos
feito capitão de sua gente, depois da morte de Epaminondas, e após a vitória lhes
tolheu a liberdade, Os milaneses, morto o Duque Felipe, assalariaram Francisco
Sforza para combater os venezianos e o mesmo, vencidos os inimigos em
Caravaggio, a estes se uniu para oprimir os milaneses, seus patrões. Sforza, seu
pai, estando a serviço da Rainha Joana de Nápoles, deixou-a repentinamente
desarmada; por isso ela, para não perder o reino, foi obrigada a lançar-se aos
braços do Rei de Aragão.
E se venezianos e florentinos, ao contrário, tiveram aumentado o seu domínio
com essas tropas, e os seus capitães se fizeram príncipes mas os defenderam,
esclareço que os florentinos, neste caso, foram favorecidos pela sorte, porque dos
capitães de valor, aos quais podiam temer, alguns não venceram ou tiveram de
lutar contra antagonistas, outros voltaram sua ambição para paragens diversas.
Quem não venceu foi Giovanni Aucut, por isso mesmo não se podendo conhecer
de sua fidelidade, mas todos estarão concordes que, tivesse vencido, os
florentinos estariam à sua mercê. Sforza sempre teve os Braccio contra si,
vigiando-se uns aos outros. Francisco voltou sua ambição para a Lombardia,
Braccio contra a Igreja e o reino de Nápoles. Mas, vejamos o que ocorreu há
pouco tempo. Os florentinos fizeram Paulo Vitelli seu capitão, homem de muita
prudência e que, de vida privada, havia alcançado mui grande reputação. Se ele
conquistasse Pisa, não haveria quem negasse convir aos florentinos estar sob
suas ordens, mesmo porque, se ele tivesse ficado como soldado de seus
inimigos, não teriam remédio e, tendo-o ao seu lado, deveriam obedecer-lhe.
Os venezianos, se se considerar os seus progressos, ver-se-á terem operado
segura e gloriosamente enquanto fizeram a guerra sozinhos (o que foi antes de
voltarem suas vistas para a terra) sendo que, com o apoio dos gentis-homens e
com a plebe armada, operaram mui galhardamente; mas, como eles começaram
a combater em terra, abandonaram essa prudência e seguiram os costumes de
guerra da Itália. No princípio de sua expansão terrestre, por não possuírem muito
Estado e por usufruírem alta reputação, não precisavam temer muito seus
capitães; mas, quando ampliaram suas conquistas, o que ocorreu sob o
Carmignola, tiveram a prova desse erro. Por tanto, tendo visto seu valor quando
sob seu comando bateram o duque de Milão e sentindo, de outra parte, quanto
ele esfriara no conduzir a guerra, julgaram não mais ser possível com ele vencer
dada a sua má vontade; e não podendo licenciá-lo para não perder aquilo que
tinham adquirido, para se garantirem viram-se na contingência de matá-lo,
Tiveram depois por seus capitães Bartolomeu e Bergamo, Roberto de São
Severino, Conde de Pitigliano e outros parecidos, com os quais deviam temer as
derrotas e não suas conquistas, como ocorreu depois em Vailá, onde, num dia,
perderam tudo aquilo que, em oitocentos anos, com tanta fadiga, tinham
conquistado. Na verdade, destas tropas resultam apenas lentas, tardias e fracas
conquistas, mas rápidas e miraculosas perdas. E, como apresentei estes
exemplos da Itália que tem sido por muitos anos dominada por armas
mercenárias, quero analisar essas tropas por forma mais genérica, a fim de que,
vendo a origem e o desenvolvimento das mesmas, se possa melhor corrigir o erro
de seu emprego.
Deveis, pois, saber como, logo que nestes últimos anos o império começou a ser
repelido da Itália e o Papa passou a ter reputação no poder temporal, a Itália
dividiu-se em vários Estados. Na verdade, muitas das maiores cidades tomaram
das armas contra seus nobres, os quais, antes favorecidos pelo imperador, as
mantinham oprimidas, e a Igreja, para obter reputação em seu poder temporal, as
favorecia em tal; de muitas outras, os seus cidadãos se tornaram príncipes.
Daí resultar que, tendo a Itália quase toda, chegado a cair nas mãos da Igreja e
de algumas repúblicas, não estando aqueles padres e aqueles outros cidadãos
habituados ao uso das armas, começaram a aliciar mercenários estrangeiros. O
primeiro que deu fama a essa milícia foi Alberico da Conio, natural da Romanha,
sendo que de sua escola de armas vieram, dentre outros, Braccio e Sforza, nos
seus dias os árbitros da Itália. Depois destes vieram todos os outros que até
nossos tempos têm chefiado essas tropas, e o fim do valor das mesmas foi que a
Itália viu-se percorrida por Carlos, saqueada por Luís, violentada por Fernando e
desonrada pelos suíços.
A ordem que eles observaram inicialmente foi, para dar reputação a si próprios,
tirar o conceito da infantaria, Fizeram isso porque, sendo eles sem Estado e
vivendo da indústria das armas, poucos infantes não lhes dariam fama e, sendo
muitos, não poderiam alimentá-los; assim, limitaram-se à cavalaria onde, com
número suportável, as tropas podiam ser nutridas e eles honrados. E, afinal, a
situação tornou-se tal que, em um exército de vinte mil soldados, não se
encontravam dois mil infantes. Tinham, além disso, usado todos os meios para
afastar de si e de seus soldados o cansaço e o medo, não se matando nos
combates, fazendo-se prisioneiros uns aos outros e libertando-se depois sem
resgate. Não atacavam as cidades muradas e os das cidades não assaltavam os
acampamentos; não faziam nem estacadas nem fossos, não saíam a campo no
inverno. Todas estas coisas eram permitidas nas suas regras militares, por eles
encontradas para fugir, como foi dito, à fadiga e aos perigos; foi por isso que
arrastaram a Itália à escravidão e à desonra.
CAPÍTULO XIII
DOS SOLDADOS AUXILIARES, MISTOS E PRÓPRIOS
(DE MILITIBUS AUXILIARIIS, MIXTIS ET PROPRIIS)
As tropas auxiliares, que são as outras forças inúteis, são aquelas que se
apresentam quando chamas um poderoso para que, com seus exércitos, te venha
ajudar e defender, como fez em tempos recentes o Papa Júlio que, tendo visto na
campanha de Ferrara a triste figura de suas tropas mercenárias, voltou-se para as
auxiliares e entrou em acordo com Fernando, rei da Espanha, no sentido de que
este, com sua gente e armas, viesse ajudá-lo. Estas tropas auxiliares podem ser
úteis e boas para si mesmas, mas, para quem as chame, são quase sempre
danosas, eis que perdendo ficas liquidado, vencendo ficas seu prisioneiro.
E, ainda que destes exemplos estejam cheias as antigas histórias, não quero
abandonar esta recente lição de Júlio II, cuja deliberação de entregar-se
inteiramente às mãos de um estrangeiro, por querer Ferrara, não podia ter sido
mais insensata. Mas a boa sorte fez surgir uma terceira circunstância, a fim de
que não viesse ele a colher o resultado de sua má decisão; sendo os seus
auxiliares derrotados em Ravenna e surgindo os suíços que, contra a expectativa
de Júlio e de outros, expulsaram os vencedores, o Papa não se tornou prisioneiro
nem dos vencedores, que fugiram, nem de suas tropas auxiliares, por ter vencido
com outras armas que não as delas. Os florentinos, estando completamente
desarmados, levaram dez mil franceses a Pisa para atacá-la, resolução essa em
razão da qual passaram por maior perigo do que em qualquer tempo de seus
próprios trabalhos. O imperador de Constantinopla, para opor-se a seus vizinhos,
concentrou na Grécia dez mil turcos que, terminada a guerra, não quiseram
abandonar o país, o que constitui o início da sujeição da Grécia aos infiéis.
Assim, aquele que queira não poder vencer, valha-se destas tropas muito mais
perigosas do que as mercenárias, eis que com estas a ruína é certa, dado que
são todas unidas, todas voltadas à obediência a outrem. As mercenárias, para te
prejudicarem após a vitória, contrariamente ao que ocorre com as mistas,
precisam de mais tempo e maior oportunidade, não só por não constituírem um
todo, como também por terem sido organizadas e pagas por ti; ainda, um terceiro
que nelas tornes chefe, não pode desde logo assumir tanta autoridade que te
cause dano. Enfim, enquanto nas tropas mercenárias o mais perigoso é a
covardia, nas auxiliares é o valor.
Um príncipe prudente, portanto, sempre tem fugido a essas tropas para voltar-se
às suas próprias forças, preferindo perder com as suas a vencer com aquelas, eis
que, em verdade, não representaria vitória aquela que fosse conquistada com as
armas alheias. Jamais vacilarei em citar como exemplo César Bórgia e suas
ações. Este duque entrou na Romanha com tropas auxiliares, para aí conduzindo
as forças francesas, com elas tomando Imola e Forli. Mas, depois, não mais lhe
parecendo seguras tais armas, voltou-se para as mercenárias, julgando nelas
encontrar menor perigo; e tomou a seu serviço os Orsini e os Viteili.
Posteriormente, manejando essas forças e achando-as dúbias, infiéis e perigosas,
extinguiu-as e voltou-se para as suas próprias tropas. Pode-se ver facilmente a
diferença que existe entre umas e outras dessas armas, considerando a
modificação da reputação do duque entre quando tinha apenas os franceses e
depois os Orsíni e Vitelli, e quando ele ficou com soldados seus e sob seu próprio
comando: sempre se a encontrará acrescida, e nem foi suficientemente amado
senão quando todos viram que ele era o senhor absoluto de suas tropas.
Eu não queria abandonar os exemplos italianos e mais recentes; contudo, não
desejo esquecer Hierão de Siracusa, um dos acima indicados por mim. Este,
como já disse, tornado pelos siracusanos chefe dos exércitos, logo reconheceu
não ser útil a tropa mercenária, por serem seus chefes idênticos aos nossos
italianos; parecendo-lhe não poder conservá-los nem dispensá-los, fez cortar
todos eles em pedaços, passando depois a fazer guerra com tropas suas e não
com as de outrem, Quero, ainda, trazer à lembrança uma alegoria do Velho
Testamento feita a este propósito. Oferecendo-se David a Saul para lutar com
Golias, provocador filisteu, Saul, para encorajá-lo, revestiu-o com suas próprias
armaduras, as quais, uma vez envergadas por David, foram por ele recusadas:
com elas não poderia bem se valer de si mesmo, preferindo enfrentar o inimigo
apenas com sua funda e sua faca. Enfim, as armas de outrem, ou te caem de
cima, ou te pesam ou te constrangem.
Carlos VII, pai de Luís XI, tendo com sua fortuna e sua virtude libertado a França
dos ingleses, conheceu essa necessidade de armar-se com forças próprias, e
organizou em seu reino, por forma regular, as armas de cavalaria e de infantaria.
Mais tarde, o Rei Luís, seu filho, extinguiu a infantaria e começou a aliciar os
suíços, erro esse que, seguido de outros, tornou-se, como realmente agora se vê,
a razão dos perigos daquele reino, Na verdade, dando reputação aos suíços, Luis
aviltou todas as suas tropas, já que extinguiu as forças de infantaria e subordinou
sua cavalaria às milícias de outrem, e a esta, acostumada a militar com os suíços,
pareceu não ser possível vencer sem eles. Daí decorre que não bastam os
franceses contra os suíços e, sem os suíços, não tentam a luta contra os outros.
Os exércitos de França, pois, têm sido mistos, parte de mercenários e parte de
tropas próprias, forças essas que, juntas, são muitos melhores que as simples
auxiliares ou as meramente mercenárias e muito inferiores ao exército próprio.
Basta o exemplo citado, pois o reino de França seria invencível, se a organização
militar de Carlos tivesse sido desenvolvida ou conservada. Mas a pouca prudência
dos homens muitas vezes começa uma coisa que lhe parece boa, sem se
aperceber do veneno que ela encobre, como já disse acima a respeito das febres
éticas.
Portanto, aquele que num principado não conhece os males logo no início, não é
verdadeiramente sábio, o que é dado a poucos. E, se se considerar o início da
ruína do Império Romano, ver-se-á ter ela resultado do simples começo de
aliciamento dos godos, eis que foi dai que começaram a declinar as forças do
Império Romano e todo aquele valor que se lhe tirava era atribuído a eles.
Concluo, pois, que, sem ter armas próprias, nenhum principado está seguro; ao
contrário, fica ele totalmente sujeito à sorte, não havendo virtude que o defenda
na adversidade. Foi sempre opinião e sentença dos homens sábios, quod nihíl sit
tam infirmum aut instabile, quam fama potentiae non sua vi nixa. As forças
próprias são aquelas que se constituem de súditos, de cidadãos ou de criaturas
tuas; todas as outras são ou mercenárias ou auxiliares. O modo de organizar as
tropas próprias será fácil de encontrar, se se analisar a organização dos quatro
por mim mencionados, e se se considerar como Felipe, pai de Alexandre Magno,
e muitas repúblicas e principados, se armaram e organizaram; a essas
organizações eu me reporto inteiramente.
CAPÍTULO XIV
O QUE COMPETE A UM PRÍNCIPE ACERCA DA MILÍCIA (TROPA)
(QUOD PRINCIPEM DECEAT CIRCA MILITIAM)
Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar
qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra e a sua organização e disciplina,
pois que é essa a única arte que compete a quem comanda. E é ela de tanta
virtude, que não só mantém aqueles que nasceram príncipes, como também
muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto; ao
contrário, vê-se que, quando os príncipes pensam mais nas delicadezas do que
nas armas, perdem o seu Estado. A primeira causa que te faz perder o governo é
negligenciar dessa arte, enquanto que a razão que te permite conquistá-lo é o ser
professo da mesma.
Francisco Sforza, por estar armado, de cidadão privado que era, tornou-se duque
de Milão; os filhos, para fugir às fadigas das armas, de duques passaram a
simples cidadãos privados. Em verdade, entre outros males que te acarreta o
estares desarmado, ele te torna vil, o que constitui uma daquelas infâmias de que
o príncipe se deve guardar, como abaixo será exposto. Realmente, entre um
príncipe armado e um desarmado, não existe proporção alguma, e não é razoável
que quem esteja armado obedeça com gosto ao que seja desprovido de armas,
nem que o desarmado se sinta seguro entre servidores armados, eis que,
existindo desdém de parte de um e suspeita do lado do outro, não é possível ajam
bem, estando juntos. Ainda, um príncipe que não entende de tropas, além dos
outros prejuízos referidos, sofre aquele de não poder ser estimado pelos seus
soldados e nem poder neles confiar.
Deve o príncipe, portanto, não desviar um momento sequer o seu pensamento do
exercício da guerra, o que pode fazer por dois modos: um com a ação, o outro
com a mente, Quanto à ação, além de manter bem organizadas e exercitadas as
suas tropas, deve estar sempre em caçadas para acostumar o corpo às fadigas e,
em parte, para conhecer a natureza dos lugares e saber como surgem os montes,
como embocam os vales, como se estendem as planícies, e aprender a natureza
dos rios e dos pântanos, pondo muita atenção em tudo isso. Esses
conhecimentos são úteis por duas razões: primeiro, aprende-se a conhecer o
próprio país e pode-se melhor identificar as defesas que ele oferece; depois, em
decorrência do conhecimento e prática daqueles sítios, com facilidade poderá
entender qualquer outra região que venha a ter de observar, eis que as colinas, os
vales, as planícies, os rios e os pântanos que existem, por exemplo, na Toscana,
têm certa semelhança com os das outras províncias, de forma que, do
conhecimento do terreno de uma província, se pode passar facilmente ao de
outras. O príncipe que seja falto dessa perícia, está desprovido do elemento
principal de que necessita um capitão, pois ela ensina a encontrar o inimigo,
estabelecer os acampamentos, conduzir os exércitos, ordenar as jornadas, fazer
incursões pelas terras com vantagem sobre o inimigo.
Filopémenes, príncipe dos Aqueus, dentre os louvores que lhe foram endereçados
pelos escritores, mereceu também aquele de que, nos tempos de paz, em outra
coisa não pensava senão em torno de guerra e, quando excursionando pelos
campos com os amigos, freqüentemente parava e com eles argumentava: - Se os
inimigos estivessem sobre aquela colina e nós nos encontrássemos aqui com
nosso exército, qual de nós teria vantagem? Como se poderia atacá-los,
mantendo a formação da tropa? Se quiséssemos nos retirar, como deveríamos
proceder? Se eles se retirassem, como faríamos para persegui-los? - E propunhalhes,
andando, todos os casos que possam ocorrer em um exército; ouvia a
opinião dos mesmos, dava a sua corroborando-a com argumentos, de maneira tal
que, em razão dessas contínuas cogitações, jamais poderia, comandando os
exércitos, encontrar pela frente algum imprevisto para o qual não tivesse solução.
Mas, quanto ao exercício da mente, deve o príncipe ler as histórias e nelas
observar as ações dos grandes homens, ver como se conduziram nas guerras,
examinar as causas de suas vitórias e de suas derrotas, para poder fugir às
responsáveis por estas e imitar as causadoras daquelas; deve fazer, sobretudo,
como, em tempos idos, fizeram alguns grandes homens que imitaram todo aquele
que antes deles foi louvado e glorificado, e sempre tiveram em si os gestos e as
ações do mesmo, como se diz que Alexandre Magno imitava a Aquiles, César a
Alexandre, Cipião a Ciro. Quem lê a vida de Ciro escrita por Xenofonte percebe,
depois, na vida de Cipião, o quanto lhe valeu para a glória aquela imitação, bem
como o quanto na castidade, afabilidade, humanidade e liberalidade, Cipião se
assemelhava àquilo que Xenofonte escreveu de Ciro. Um príncipe inteligente deve
observar essa semelhança de proceder, nunca ficando ocioso nos tempos de paz,
mas sim, com habilidade, procurar formar cabedal para poder utilizá-lo na
adversidade, a fim de que, quando mudar a fortuna, se encontre preparado para
resistir.
CAPÍTULO XV
DAQUELAS COISAS PELAS QUAIS OS HOMENS, E
ESPECIALMENTE OS PRÍNCIPES, SÃO LOUVADOS OU
VITUPERADOS
(DE HIS REBUS QUIBUS HOMINES, ET PRAESERTIM PRINCIPES,
LAUDANTUR AUT VITUPERANTUR)
Resta ver agora quais devam ser os modos e o proceder de um príncipe para com
os súditos e os amigos e, por que sei que muitos já escreveram a respeito, duvido
não ser considerado presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo assunto,
máxime quando irei disputar essa matéria à orientação já por outros dada aos
príncipes. Mas, sendo minha intenção escrever algo de útil para quem por tal se
interesse, pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos
fatos e não à imaginação dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e
principados jamais vistos ou conhecidos como tendo realmente existido. Em
verdade, há tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que aquele
que abandone o que se faz por aquilo que se deveria fazer, aprenderá antes o
caminho de sua ruína do que o de sua preservação, eis que um homem que
queira em todas as suas palavras fazer profissão de bondade, perder-se-á em
meio a tantos que não são bons. Donde é necessário, a um príncipe que queira se
manter, aprender a poder não ser bom e usar ou não da bondade, segundo a
necessidade.
Deixando de parte, assim, os assuntos relativos a um príncipe imaginário e
falando daqueles que são verdadeiros, digo que todos os homens, máxime os
príncipes por situados em posição mais preeminente, quando analisados, se
fazem notar por alguns daqueles atributos que lhes acarretam ou reprovação ou
louvor. Assim é que alguns são havidos como liberais, alguns miseráveis (usando
um termo toscano, porque "avaro" em nossa língua é ainda aquele que deseja
possuir por rapina, enquanto "miserável" chamamos aquele que se abstém em
excesso de usar o que possui); alguns são tidos como pródigos, alguns rapaces;
alguns cruéis, alguns piedosos; um fedífrago, o outro fiel; um efeminado e
pusilânime, o outro feroz e animoso; um humano, o outro soberbo; um lascivo, o
outro casto; um simples, o outro astuto; um duro, o outro fácil; um grave, o outro
leviano; um religioso, o outro incrédulo, e assim por diante.
Sei que cada um confessará que seria sumamente louvável encontrarem-se em
um príncipe, de todos os atributos acima referidos, apenas aqueles que são
considerados bons; mas, desde que não os podem possuir nem inteiramente
observá-los em razão das contingências humanas não o permitirem, é necessário
seja o príncipe tão prudente que saiba fugir à infâmia daqueles vícios que o fariam
perder o poder, cuidando evitar até mesmo aqueles que não chegariam a pôr em
risco o seu posto; mas, não podendo evitar, é possível tolerá-los, se bem que com
quebra do respeito devido. Ainda, não evite o príncipe de incorrer na má faina
daqueles vícios que, sem eles, difícil se lhe torne salvar o Estado; pois, se bem
considerado for tudo, sempre se encontrará alguma coisa que, parecendo virtude,
praticada acarretará ruína, e alguma outra que, com aparência de vício, seguida
dará origem à segurança e ao bem-estar.
CAPÍTULO XVI
DA LIBERALIDADE E DA PARCIMÔNIA
(DE LIBERALITATE ET PARSIMONIA)
Começando, pois, com os primeiros dos já referidos atributos, digo que seria um
bem o ser havido como liberal. Contudo, a liberalidade, usada por forma que se
torne conhecida de todos, te prejudica, porque, se usada virtuosamente e como
se a deve usar, ela não se torna conhecida e não conseguirás tirar de cima de ti a
má fama do seu contrário; porém, querendo manter entre os homens o nome de
liberal, é preciso não esquecer nenhuma espécie de suntuosidade, de forma tal
que um príncipe assim procedendo consumirá em ostentação todas as suas
finanças e terá necessidade de, ao final, se quiser manter o conceito de liberal,
gravar extraordinariamente o povo de impostos, ser duro no fisco e fazer tudo
aquilo de que possa se utilizar para obter dinheiro. Isso começará a torná-lo
odioso perante o povo e, empobrecendo-o, fá-lo-á pouco estimado de todos; de
forma que, tendo ofendido a muitos e premiado a poucos com essa sua
liberalidade, sente mais intensamente qualquer revés inicial e periclita face ao
primeiro perigo. Percebendo isso e querendo recuar, o príncipe incorre desde logo
na má fama de miserável.
Um príncipe, pois, não podendo usar essa qualidade de liberal sem sofrer dano,
tornando-a conhecida, deve ser prudente, deve não se preocupar com a pecha de
miserável, eis que, com o decorrer do tempo, será considerado sempre mais
liberal, uma vez vendo o povo que com sua parcimônia a receita lhe basta, pode
defender-se de quem lhe mova guerra e tem possibilidade de realizar
empreendimentos sem gravar o povo; assim agindo, vem a usar liberalidade para
com todos aqueles dos quais nada tira, que são numerosos, e a empregar miséria
para com todos os outros a quem não dá, que são poucos. Nos nossos tempos
não temos visto grandes realizações senão daqueles que foram havidos por
miseráveis, enquanto vimos os outros serem extintos. O Papa Júlio II, como
utilizou a fama de liberal para atingir ao papado, não pensou depois em conservála,
para poder fazer guerra; o atual rei de França fez tantas guerras sem lançar
um tributo extraordinário sobre seus súditos, somente porque sobrepôs sua
parcimônia às despesas supérfluas. O presente rei de Espanha, se havido como
liberal, não teria realizado nem vencido em tantos empreendimentos.
Portanto, um príncipe deve gastar pouco para não precisar roubar seus súditos,
para poder defender-se, para não ficar pobre e desprezado, para não ser forçado
a tornar-se rapace, não se importando de incorrer na fama de miserável, porque
esse é um daqueles defeitos que o fazem reinar. E se alguém dissesse que César
alcançou o Império pela liberalidade, sem contar muitos outros que têm sido ou
são considerados liberais e atingiram altíssimos postos, eu responderia: ou tu já
és príncipe ou estás em via de o ser. No primeiro caso, essa liberalidade é
prejudicial, no segundo é bem necessário ser considerado liberal; e César era um
daqueles que queriam ascender ao principado de Roma, mas se, depois que o
alcançou, tivesse vivido e não tivesse usado comedimento nas despesas, teria
destruído o Império. E se alguém replicasse que houve muitos príncipes, tidos
como extremamente liberais, que realizaram grandes feitos com seus exércitos,
responderia: ou o príncipe gasta do seu, ou de seus súditos, ou de outrem; no
primeiro caso, deve ser parcimonioso; nos outros, não deve deixar de praticar
nenhuma liberalidade.
E aquele príncipe que vai com os exércitos, que se mantém de rapinagem, de
saques e de resgates, maneja bens de outros, tem necessidade dessa
liberalidade porque, do contrário, não será seguido pelos soldados. E, daquilo que
não é teu nem de súditos teus, podes ser o mais generoso doador, como o foram
Ciro, César e Alexandre, eis que o despender aquilo que é dos outros não te tira
reputação, ao contrário, a aumenta; somente o gastar o teu é que te prejudica. E
não há coisa que tanto se destrua a si mesma como a liberalidade, pois, enquanto
tu a usas, perdes a faculdade de utilizá-la, tornando-te pobre e desprezado ou,
para fugir à pobreza, rapace e odioso. Dentre todas as coisas de que um príncipe
se deve guardar está o ser desprezado e odiado, e a liberalidade te conduz a uma
e a outra dessas coisas. Portanto, é mais sabedoria ter a fama de miserável, que
dá origem a uma infâmia sem ódio, do que, por querer o conceito de liberal, ver-se
na necessidade de incorrer no julgamento de rapace, que cria uma má fama com
ódio.
CAPÍTULO XVII
DA CRUELDADE E DA PIEDADE; SE É MELHOR SER AMADO QUE
TEMIDO, OU ANTES TEMIDO QUE AMADO
(DE CRUDELITATE ET PIETATE; ET AN SIT MELIUS AMARI QUAM TIMERI,
VEL E CONTRA)
Reportando-me às outras qualidades já referidas, digo que cada príncipe deve
desejar ser tido como piedoso e não como cruel: não obstante isso, deve ter o
cuidado de não usar mal essa piedade. César Bórgia era considerado cruel;
entretanto, essa sua crueldade tinha recuperado a Romanha, logrando uní-la e
pô-la em paz e em lealdade. O que, se bem considerado for, mostrará ter sido ele
muito mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à pecha de cruel,
deixou que Pistóia fosse destruída. Um príncipe não deve, pois, temer a má fama
de cruel, desde que por ela mantenha seus súditos unidos e leais, pois que, com
mui poucos exemplos, ele será mais piedoso do que aqueles que, por excessiva
piedade, deixam acontecer as desordens das quais resultam assassínios ou
rapinagens: porque estes costumam prejudicar a comunidade inteira, enquanto
aquelas execuções que emanam do príncipe atingem apenas um indivíduo. E,
dentre todos os príncipes, é ao novo que se torna impossível fugir à pecha de
cruel, visto serem os Estados novos cheios de perigos. Diz Virgílio, pela boca de
Dido:
Res dura,et regni novitas me talia cogunt
moliri, et late fines custode tueri.
O príncipe, contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar por si mesmo
e proceder por forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar
que a excessiva confiança o torne incauto e a demasiada desconfiança o faça
intolerável.
Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A
resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil
reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do
que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos,
volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes
fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os
filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando
esta se avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em
suas palavras, encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está
perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e
nobreza de alma, são compradas mas com elas não se pode contar e, no
momento oportuno, não se torna possível utilizá-las. E os homens têm menos
escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer,
posto que a amizade é mantida por um vínculo de obrigação que, por serem os
homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a eles convenha; mas o
temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona.
Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer de forma que, se não conquistar o
amor, fuja ao ódio, mesmo porque podem muito bem coexistir o ser temido e o
não ser odiado: isso conseguirá sempre que se abstenha de tomar os bens e as
mulheres de seus cidadãos e de seus súditos e, em se lhe tornando necessário
derramar o sangue de alguém, faça-o quando existir conveniente justificativa e
causa manifesta. Deve, sobretudo, abster-se dos bens alheios, posto que os
homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do
patrimônio. Além disso, nunca faltam motivos para justificar as expropriações, e
aquele que começa a viver de rapinagem sempre encontra razões para apossarse
dos bens alheios, ao passo que as razões para o derramamento de sangue
são mais raras e esgotam-se mais depressa.
Mas quando o príncipe está à frente de seus exércitos e tem sob seu comando
uma multidão de soldados, então é de todo necessário não se importar com a
fama de cruel, eis que, sem ela, jamais se conservará exército unido e disposto a
alguma empresa. Dentre as admiráveis ações de Aníbal, menciona-se esta: tendo
um exército imenso, constituído de homens de inúmeras raças, conduzido a
batalhar em terras alheias, nunca surgiu qualquer dissensão entre eles ou contra
o príncipe, tanto na má como na boa fortuna. Isso não pode resultar de outra
coisa senão daquela sua desumana crueldade que, aliada às suas infinitas
virtudes, o tornou sempre venerado e terrível no conceito de seus soldados; sem
aquela crueldade, as virtudes não lhe teriam bastado para surtir tal efeito e,
todavia, escritores nisto pouco ponderados, admiram, de um lado, essa sua
atuação e, de outro, condenam a principal causa da mesma.
Para prova de que, realmente, as outras suas virtudes não seriam bastantes,
pode-se considerar o caso de Cipião, homem dos mais notáveis não somente nos
seus tempos mas também na memória de todos os fatos conhecidos, cujos
exércitos se revoltaram na Espanha em conseqüência de sua excessiva piedade,
pois que havia concedido aos seus soldados mais liberdades do que convinha à
disciplina militar. Tal fato foi-lhe censurado no Senado por Fábio Máximo, o qual
chamou-o de corruptor da milícia romana. Os locrenses, tendo sido arruinados e
abatidos por um legado de Cipião, não foram por ele vingados, nem a insolência
daquele legado foi reprimida, resultando tudo isso de sua natureza fácil; tanto
assim que, querendo alguém desculpá-lo perante o Senado, disse haver muitos
homens que melhor sabiam não errar do que corrigir os erros. Essa sua natureza
teria com o tempo sacrificado a fama e a glória de Cipião, tivesse ele perseverado
no comando; mas, vivendo sob o governo do Senado, esta sua prejudicial
qualidade não só desapareceu, como lhe resultou em glória.
Concluo, pois, voltando à questão de ser temido e amado, que um príncipe sábio,
amando os homens como a eles agrada e sendo por eles temido como deseja,
deve apoiar-se naquilo que é seu e não no que é dos outros; deve apenas
empenhar-se em fugir ao ódio, como foi dito.
CAPÍTULO XVIII
DE QUE MODO OS PRÍNCIPES DEVEM MANTER A FÉ DA PALAVRA
DADA
(QUOMODO FIDES A PRINCIPIBUS SIT SERVANDA)
Quando seja louvável em um príncipe o manter a fé (da palavra dada) e viver com
integridade, e não com astúcia, todos compreendem; contudo, vê-se nos nossos
tempos, pela experiência, alguns príncipes terem realizado grandes coisas a
despeito de terem tido em pouca conta a fé da palavra dada, sabendo pela
astúcia transtornar a inteligência dos homens; no final, conseguiram superar
aqueles que se firmaram sobre a lealdade.
Deveis saber, então, que existem dois modos de combater: um com as leis, o
outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo, dos animais; mas,
como o primeiro modo muitas vezes não é suficiente, convém recorrer ao
segundo. Portanto, a um príncipe torna-se necessário saber bem empregar o
animal e o homem. Esta matéria, aliás, foi ensinada aos príncipes, veladamente,
pelos antigos escritores, os quais descrevem como Aquiles e muitos outros
príncipes antigos foram confiados à educação do centauro Quiron. Isso não quer
dizer outra coisa, o ter por preceptor um ser meio animal e meio homem, senão
que um príncipe precisa saber usar uma e outra dessas naturezas: uma sem a
outra não é durável.
Necessitando um príncipe, pois, saber bem empregar o animal, deve deste tomar
como modelos a raposa e o leão, eis que este não se defende dos laços e aquela
não tem defesa contra os lobos. É preciso, portanto, ser raposa para conhecer os
laços e leão para aterrorizar os lobos. Aqueles que agem apenas como o leão,
não conhecem a sua arte. Logo, um senhor prudente não pode nem deve guardar
sua palavra, quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando
desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la. Se todos os homens
fossem bons, este preceito seria mau; mas, porque são maus e não observariam
a sua fé a teu respeito, não há razão para que a cumpras para com eles. Jamais
faltaram a um príncipe razões legítimas para justificar a sua quebra da palavra.
Disto poder-se-ia dar inúmeros exemplos modernos, mostrar quantas pazes e
quantas promessas foram tornadas írritas e vãs pela infidelidade dos príncipes; e
aquele que, com mais perfeição, soube agir como a raposa, saiu-se melhor. Mas
é necessário saber bem disfarçar esta qualidade e ser grande simulador e
dissimulador: tão simples são os homens e de tal forma cedem às necessidades
presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar.
Não quero deixar de apontar um dos exemplos recentes. Alexandre VI jamais fez
outra coisa, jamais pensou em outra coisa senão enganar os homens, sempre
encontrando ocasião para assim poder agir. Nunca existiu homem que tivesse
maior eficácia em asseverar, que com maiores juramentos afirmasse uma coisa e
que, depois, menos a observasse; não obstante, os enganos sempre lhe
resultaram segundo o seu desejo, pois bem conhecia este lado do mundo.
A um príncipe, portanto, não é essencial possuir todas as qualidades acima
mencionadas, mas é bem necessário parecer possuí-las. Antes, ousarei dizer que,
possuindo-as e usando-as sempre, elas são danosas, enquanto que, aparentando
possuí-las, são úteis; por exemplo: parecer piedoso, fiel, humano, íntegro,
religioso, e sê-lo realmente, mas estar com o espírito preparado e disposto de
modo que, precisando não sê-lo, possas e saibas tornar-te o contrário, Deve-se
compreender que um príncipe, e em particular um príncipe novo, não pode
praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma
vez que, freqüentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé,
contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. Porém, é preciso que
ele tenha um espírito disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as
variações dos fatos o determinem e, como acima se disse, não apartar-se do
bem, podendo, mas saber entrar no mal, se necessário.
Um príncipe, portanto, deve ter muito cuidado em não deixar escapar de sua boca
nada que não seja repleto das cinco qualidades acima mencionadas, para
parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo piedade, todo fé, todo integridade, todo
humanidade, todo religião; e nada existe mais necessário de ser aparentado do
que esta última qualidade. É que os homens em geral julgam mais pelos olhos do
que pelas mãos, porque a todos cabe ver mas poucos são capazes de sentir.
Todos vêem o que tu aparentas, poucos sentem aquilo que tu és; e esses poucos
não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos que, aliás, estão protegidos pela
majestade do Estado; e, nas ações de todos os homens, em especial dos
príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das
mesmas, Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão
sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa
levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo;
os poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar. Algum
príncipe dos tempos atuais, que não convém nomear, não prega senão a paz e fé,
mas de uma e outra é ferrenho inimigo; uma e outra, se ele as tivesse praticado,
ter-lhe-iam por mais de uma vez tolhido a reputação ou o Estado.
CAPÍTULO XIX
DE COMO SE DEVA EVITAR O SER DESPREZADO E ODIADO
(DE CONTEMPTU ET ODIO FUGIENDO)
Porque falei das mais importantes das qualidades acima mencionadas, desejo
discorrer rapidamente sobre as outras, sob estas generalidades: que o príncipe
pense (como acima se disse em parte) em fugir àquelas circunstâncias que
possam torná-lo odioso e desprezível; sempre que assim proceder, terá cumprido
o que lhe compete e não encontrará perigo algum nos outros defeitos. Odioso o
tornará, acima de tudo, como já disse, o ser rapace e usurpador dos bens e das
mulheres dos súditos, do que se deve abster; e, desde que não se tirem nem os
bens nem a honra à universalidade dos homens, estes vivem felizes e somente se
terá de combater a ambição de poucos, o que se refreia por muitos modos e com
facilidade. Desprezível o torna ser considerado volúvel, leviano, efeminado,
pusilânime, irresoluto, do que um príncipe deve guardar-se como de um escolho,
empenhando-se para que nas suas ações se reconheça grandeza, coragem,
gravidade e fortaleza; com relação às ações privadas dos súditos, deve querer
que a sua sentença seja irrevogável; deve manter-se em tal conceito que ninguém
possa pensar em enganá-lo ou traí-lo.
O príncipe que dá de si esta opinião é assaz reputado e, contra quem é reputado,
só com muita dificuldade se conspira; dificilmente é atacado, desde que se
considere excelente e seja reverenciado pelos seus. Na verdade, um príncipe
deve ter dois temores: um de ordem interna, de parte de seus súditos, o outro de
natureza externa, de parte dos potentados estrangeiros. Destes se defende com
boas armas e bons amigos; e sempre que tenha boas armas terá bons amigos. A
situação interna, desde que ainda não perturbada por uma conspiração, estará
segura sempre que esteja estabilizada a externa; mesmo quando esta se agite, se
o príncipe organizou-se e viveu como eu já disse, desde que não desanime,
resistirá a qualquer impacto, como salientei ter feito o espartano Nábis.
Mas, a respeito dos súditos, quando os negócios externos não se agitam, deve-se
temer que conspirem secretamente, contra o que o príncipe se assegura
firmemente fugindo de ser odiado ou desprezado e mantendo o povo com ele
satisfeito; isto é de necessidade seja conseguido, como já acima se falou
longamente. Um dos mais poderosos remédios de que um príncipe pode dispor
contra as conspirações é não ser odiado pela maioria, porque sempre, quem
conjura, pensa com a morte do príncipe satisfazer o povo, mas, quando considera
que com isso irá ofendê-lo, não se anima a tomar semelhante partido, mesmo
porque as dificuldades com que os conspiradores têm de se defrontar são
infinitas. Por experiência vê-se que muitas foram as conspirações mas poucas
tiveram bom fim, pois quem conspira não pode ser sozinho, nem pode ter por
companheiros senão aqueles que acredite estarem descontentes; mas, logo que
tenhas revelado a um descontente a tua intenção, lhe dás motivo para ficar
contente porque, evidentemente, ele pode daí esperar todas as vantagens; de
forma que, vendo o ganho certo de um lado, sendo o outro dúbio e cheio de
perigo, é preciso seja ou extraordi 112 nário amigo teu ou implacável inimigo do
príncipe para manter-te a palavra empenhada.
Para reduzir o assunto a termos breves, digo que do lado do conspirador não
existe senão medo, ciúme, suspeita de castigo que o atordoa; mas, do lado do
príncipe, existe a majestade do principado, as leis, as barreiras dos amigos e do
Estado que o defendem; consequentemente, somada a tais fatores a
benevolência popular, é impossível exista alguém tão temerário que venha a
conspirar. Isso porque, geralmente, onde um conspirador teme antes da execução
do mal, se tiver o povo por inimigo, deve temer ainda mesmo depois de ocorrido o
fato, não podendo por isso esperar qualquer amparo.
Deste assunto poder-se-ia citar inúmeros exemplos; porém, limito-me a apenas
um, conservado pela recordação de nossos pais. Tendo sido messer Aníbal
Bentivoglio, príncipe em Bolonha e avô do atual messer Aníbal, morto pelos
caneschi que contra ele haviam conspirado, não restando de sua família senão
messer Giovanni que era ainda criança de colo, logo após esse homicídio o povo
levantou-se e matou todos os canneschi. Isso resultou da benquerença popular
que a casa de Bentivoglio desfrutava naqueles tempos, benquerença essa tão
grande que, não restando em Bolonha qualquer membro dessa família em
condições de poder governar o Estado após a morte de Anibal e constando haver
em Florença um descendente dos Bentivoglio que se julgava até então filho de um
artífice, os bolonheses foram até essa cidade e lhe confiaram o governo daquela
comunidade, a qual foi por ele dirigida até que messer Giovanni atingisse a idade
conveniente para governar.
Concluo, portanto, que um príncipe deve dar pouca importância às conspirações
se o povo lhe é benévolo; mas quando este lhe seja adverso e o tenha em ódio,
deve temer tudo e a todos. Os Estados bem organizados e os príncipes hábeis
têm com toda a diligência procurado não desesperar os grandes e satisfazer o
povo conservando-o contente, mesmo porque este é um dos mais importantes
assuntos de que um príncipe tenha de tratar.
Entre os reinos bem organizados e governados nos nossos tempos está aquele
de França. Nele existem inúmeras boas instituições, das quais dependem a
liberdade e a segu 113 rança do rei; a primeira delas é o Parlamento com a sua
autoridade. Aquele que organizou esse reino, conhecendo a ambição dos
poderosos e a sua insolência, julgando ser necessário pôr um freio para corrigi-los
e, de outra parte, por conhecer o ódio da maioria contra os grandes com base no
medo, desejando protegê-la mas não querendo fosse este particular cuidado do
rei, buscou dele retirar o peso da odiosidade dos grandes em sendo favorecido o
povo ou deste ao dever apoiar os grandes; por isso, constituiu um terceiro juiz que
fosse aquele que, sem responsabilidade do rei, contivesse os grandes e
amparasse os pequenos. Essa ordem não podia ser melhor nem mais prudente,
nem se pode negar seja a maior razão da segurança do rei e do reino. Daí podese
extrair outra conclusão digna de nota: os príncipes devem atribuir a outrem as
coisas odiosas, reservando para si aquelas de graça. Novamente concluo que um
príncipe deve estimar os grandes, mas não se fazer odiado pelo povo.
Talvez a muitos pudesse parecer, considerando a vida e a morte de alguns
imperadores romanos, fossem elas exemplos contrários à minha opinião, dado
que viveram exemplarmente e demonstraram grandes virtudes e, sem embargo
disso, perderam o Império ou mesmo foram mortos pelos seus que contra eles
conspiraram. Querendo, portanto, responder a estas objeções, falarei das
qualidades de alguns imperadores, mostrando as causas de sua ruína, não
discrepantes daquilo que foi por mim aduzido, ao mesmo tempo, porei em
consideração aqueles fatos que são notáveis para quem lê as ações daqueles
tempos. Considero suficiente citar todos os imperadores que se sucederam no
poder, desde Marco o filósofo até Maximino, os quais foram Marco, seu filho
Cômodo, Pertinax, Juliano, Severo, seu filho Antonino Caracala, Macrino,
Heliogábalo, Alexandre e Maximino.
Deve-se notar inicialmente que, enquanto nos outros principados tem-se de lutar
apenas contra a ambição dos grandes e a insolência do povo, os imperadores
romanos encontravam uma terceira dificuldade, aquela de terem de suportar a
crueldade e a ambição dos soldados. Esta terceira dificuldade era de tal forma
séria que se tornou a causa da ruína de muitos, pois é difícil satisfazer ao mesmo
tempo os soldados e o povo: este amava a paz e, por isso, estimava os príncipes
moderados, enquanto que os soldados amavam o príncipe de ânimo militar, que
fosse insolente, cruel e rapace, querendo que o mesmo exercesse tais violências
contra as populações para poder ter, assim, duplicado soldo e expansão à sua
rapacidade e crueldade.
Tais fatos fizeram com que aqueles imperadores que, por natureza ou por
engenho, não desfrutavam uma grande reputação de forma a poder manter
freados um e outros, sempre se arruinassem; a maioria deles, principalmente
aqueles que como homens novos chegavam ao principado, conhecida a
dificuldade que resultava desses dois sentimentos diversos, propendiam para
satisfazer aos soldados, pouco se preocupando com o fato de por tal forma
ofender o povo. Esse partido era necessário: porque, não podendo o príncipe
deixar de ser odiado por alguém, deve primeiro buscar não ser odiado por
qualquer classe social; mas, quando não pode conseguir isto, deve empenhar-se
em, por todos os meios, evitar o ódio daquelas classes que são mais poderosas.
Por isso, aqueles imperadores que, por serem novos, tinham necessidade de
favores extraordinários, aderiam antes aos soldados que ao povo, o que, não
obstante, se lhes tornava útil ou não, conforme soubessem ou não conservar-se
reputados entre eles.
Das razões mencionadas, resultou que Marco, Pertinax e Alexandre, todos eles
de vida modesta, amantes da justiça, inimigos da crueldade, humanos e benignos,
tiveram, a partir de Marco, triste fim. Somente Marco viveu e morreu
honradíssimo, visto ter sucedido no império jure hereditário não tendo de
agradecê-lo nem aos soldados nem ao povo; depois, sendo dotado de muitas
virtudes que o faziam venerando, teve sempre, enquanto viveu, uma ordem e
outra dentro de seus limites, não sendo jamais odiado ou desprezado. Mas
Pertinax, tornado imperador contra a vontade dos soldados que, acostumados a
viver licenciosamente sob Cômodo, não puderam suportar aquela vida honesta a
que o imperador queria reduzi-los; por isso, tendo Pertinax criado ódio contra si e
a este ódio acrescido o desprezo por ser já velho, arruinou-se logo no início de
sua administração.
Deve-se notar aqui que o ódio se adquire tanto pelas boas como pelas más
ações: como já disse acima, querendo um príncipe conservar o Estado,
freqüentemente é forçado a não ser bom, pois quando aquele elemento mais
forte, povo, soldados ou grandes, de que julgas necessitar para manter-te, é
corrompido, convém que sigas o seu desejo para satisfazê-lo; então, as boas
obras tornam-se tuas inimigas. Mas passemos a Alexandre, o qual foi de tanta
bondade que, entre outros louvores que lhe são endereçados, existe este de que,
em quatorze anos que conservou o poder, não foi executada qualquer pessoa
sem julgamento; contudo, sendo considerado efeminado e homem que se deixava
governar pela mãe, tornou-se desprezado, o exército conspirou e ele foi morto.
Falando agora, por outro lado, das qualidades de Cômodo, Severo, Antonino
Caracala e Maximino, os achareis extremamente cruéis e rapaces: para satisfazer
os soldados, não pouparam nenhuma espécie de injúria que pudesse ser
cometida contra o povo; todos, exceto Severo, tiveram triste fim. É que Severo
possuiu tanto valor que, conservando os soldados como seus amigos, ainda que o
povo fosse por ele oprimido, pode sempre reinar com felicidade, pois aquelas
suas virtudes o tornavam tão admirável no conceito dos soldados e do povo, que
este ficava por assim dizer atônito e aturdido e aqueles reverentes e satisfeitos. E,
porque as ações do mesmo foram grandes e notáveis num príncipe novo, desejo
mostrar de forma breve quão bem soube usar a ação da raposa e do leão,
naturezas essas que, disse acima, devem ser imitadas pelos príncipes.
Tendo Severo conhecido a ignávia do Imperador Juliano, persuadiu seu exército,
do qual era capitão na Stiavônia, de que era conveniente ir a Roma para vingar a
morte de Pertinax, assassinado pelos soldados pretorianos; sob este pretexto,
sem demonstrar aspirar o Império, conduziu o exército contra Roma, chegando à
Itália antes que fosse conhecida sua partida. Estando em Roma, o Senado, por
temor, elegeu-o imperador, sendo morto Juliano. A seguir, restavam a Severo
duas dificuldades para se assenhorear de todo o Estado: uma na Ásia, onde
Pescênio Nigro, chefe dos exércitos asiáticos, se fizera aclamar imperador; a
outra no Poente, onde estava Albino que, por sua vez, também aspirava ao
Império. Porque julgasse perigoso revelar-se inimigo de ambos, deliberou atacar
Nigro e enganar Albino a quem escreveu que, tendo sido pelo Senado eleito
imperador, desejava com ele compartilhar aquela dignidade; enviou-lhe o título de
César e, por deliberação do Senado, tornou-o seu colega. Albino aceitou tais
coisas como verdadeiras; mas, depois que venceu e matou Nigro, pacificados os
negócios orientais e retornado a Roma, Severo queixou-se ao Senado de que
Albino, pouco reconhecido dos benefícios dele recebidos, tinha dolosamente
procurado matá-lo, razão pela qual via necessidade de ir punir sua ingratidão.
Depois, foi ao seu encontro na França e lhe tolheu o governo e a vida.
Quem examinar, portanto, minuciosamente as ações deste homem, achá-lo-á um
ferocíssimo leão e uma astuciosíssima raposa, ve-lo-á temido e reverenciado por
todos e não odiado pelos exércitos, não se admirando que ele, homem novo,
tenha podido deter tanto poder; a sua alta reputação o defendeu sempre daquele
ódio que, pelas suas rapinagens, o povo contra ele poderia ter concebido. Mas
Antonino, seu filho, foi, também ele, homem que possuía excelentes qualidades
que o faziam maravilhoso no conceito do povo e querido pelos soldados; era um
militar que suportava muito bem quaisquer fadigas, desprezava os alimentos
delicados e abominava toda e qualquer frouxidão, o que o tornava amado por
todos os exércitos. Contudo, sua ferocidade e crueldade foi tanta e tão inaudita,
tendo mesmo, depois de inúmeros assassínios privados, morto grande parte da
população de Roma e toda aquela de Alexandria, que tornou-se extremamente
odioso para todo o mundo: começou a ser temido também por aqueles que o
rodeavam, de forma que foi morto por um centurião em meio ao seu exército.
A propósito do referido, é de notar-se que tais assassinatos, decorrentes da
deliberação de um espírito obstinado, são impossíveis de evitar por parte dos
príncipes, porque todo aquele que não tema morrer pode golpeá-los. Todavia, o
príncipe pouco deve temer, porque tais mortes são raras. Deve apenas cuidar de
não fazer grave injúria a algum daqueles de que se serve e que tem ao seu
derredor no serviço do principado, como fez Antonino que havia morto vilmente
um irmão daquele centurião e ainda ameaçava este diariamente, enquanto o
conservava na sua própria guarda; era resolução temerária e capaz de destruí-lo,
como aconteceu.
Passemos a Cômodo, para quem era de grande facilidade manter o Império por
possuí-lo iure hereditario, uma vez que era filho de Marco; bastava-lhe seguir as
pegadas do pai e teria satisfeito os soldados e o povo. Mas, sendo de espírito
cruel e bestial, para poder usar sua rapacidade contra o povo, passou a cativar os
exércitos e torná-los licenciosos; por outro lado, não mantendo a sua dignidade,
descendo freqüentemente às arenas para combater com os gladiadores, fazendo
outras coisas extremamente vis e pouco dignas da majestade imperial, tornou-se
desprezível no conceito dos soldados. E, sendo odiado por uns e desprezado por
outros, conspiraram contra ele e foi morto.
Resta-nos narrar as qualidades de Maximino. Este foi homem belicosíssimo e,
estando os exércitos enfastiados da moleza de Alexandre, de quem falei acima,
morto este, elegeram-no para o governo. Maximino não possuiu o poder por muito
tempo, pois duas coisas tornaram-no odiado e desprezado: uma, o ser de
condição extremamente vil, pois já apascentara ovelhas na Trácia" (fato por todos
bastante conhecido e que lhe causava grande depreciação no conceito geral); a
outra, porque, tendo no início de seu principado retardado em ir a Roma e tomar
posse do trono imperial, dera de si impressão de extremamente cruel, eis que, por
intermédio de seus prefeitos, em Roma e em muitos pontos do Império, praticara
numerosas crueldades. De modo que, agitado todo o mundo pelo desprezo à
vileza de seu sangue e tomado de ódio pelo medo à sua ferocidade, rebelou-se
primeiro a África, depois o Senado com todo o povo de Roma; toda a Itália contra
ele conspirou. A esse movimento juntou-se seu próprio exército que, fazendo
campanha em Aquiléia e encontrando dificuldade no assédio, aborrecido de sua
crueldade, temendo menos por vê-lo com tantos inimigos, matou-o.
Não quero falar nem de Heliogábalo, nem de Macrino, nem de Juliano, os quais,
por serem inteiramente desprezíveis, se extinguiram logo; passarei, pois, à
conclusão deste assunto. Assim, digo que os príncipes de nossos tempos têm a
menos, nos seus governos, esta dificuldade de satisfazer extraordinariamente aos
soldados, eis que, não obstante se deva ter para com os mesmos alguma
consideração, isso se resolve logo, pois nenhum destes príncipes tem um exército
que seja inveterado com os governos e administrações das províncias, como
eram os exércitos do Império Romano. Porém, se então era necessário mais, aos
soldados do que ao povo, isso decorria de que os soldados podiam mais que
aquele; agora é necessário a todos os príncipes, exceto ao Turco e ao Sultão
satisfazer mais ao povo que aos militares, porque aquele pode mais que estes.
Faço exceção do Turco em razão de ter ele sempre, em torno de si, doze mil
infantes e quinze mil soldados de cavalaria, dos quais dependem a segurança e o
poderio do seu reino; e é necessário que, postergada qualquer outra
consideração, esse senhor os conserve amigos. E deveis notar que este Estado
do Sultão é diverso de todos os outros principados: ele é semelhante ao
pontificado cristão, a que não se pode chamar nem principado hereditário nem
principado novo, posto que não são filhos do príncipe velho que herdam e se
tornam senhores, mas sim aquele eleito para o posto pelos que têm autoridade. E,
sendo esta uma instituição antiga, não se pode chamar de principado novo, dado
que nela não existem algumas das dificuldades que se encontram nos novos: se
bem o príncipe seja novo, as instituições desse Estado são velhas e ordenadas a
recebê-lo como se fosse seu senhor hereditário.
Retornemos, porém, ao nosso assunto. Digo que todo aquele que considere o
acima exposto verá o ódio ou o desprezo ter sido a causa da ruína dos
imperadores citados e saberá, ainda, porque procedendo uma parte deles de um
modo e a outra parte por forma contrária, em qualquer um desses modos de agir
alguns deles tiveram fim feliz, enquanto os outros terminaram infelizes. A Pertinax
e Alexandre, por serem príncipes novos, foi inútil e prejudicial querer imitar Marco
que se encontrava no principado iure hereditario; igualmente, a Caracala, Cômodo
e Maximino foi pernicioso o imitar Severo, por não possuírem tanta virtude que
fosse bastante para que pudessem seguir suas pegadas. Portanto, um príncipe
novo, num principado novo, não pode imitar as ações de Marco e tampouco é
necessário seguir as de Severo; deve tomar de Severo aquelas qualidades que
forem necessárias para fundar seu Estado, e de Marco aquelas que forem
convenientes e gloriosas para conservar um governo já estabelecido e firme.
CAPÍTULO XX
SE AS FORTALEZAS E MUITAS OUTRAS COISAS QUE A CADA DIA
SÃO FEITAS PELOS PRÍNCIPES SÃO ÚTEIS OU NÃO
(AN ARCES ET MULTA ALIA QUAE COTIDIE A PRINCIPIBUS FIUNT UTILIA AN
INUTILIA SINT)
Para conservar seguramente o Estado, alguns príncipes desarmaram os seus
súditos, outros mantiveram divididas as terras submetidas, alguns nutriram
inimizades contra si mesmos, outros dedicaram-se a conquistar o apoio daqueles
que lhes eram suspeitos no início de seu governo, alguns construíram fortalezas,
outros as arruinaram e destruíram. E, se bem não seja possível estabelecer
determinado juízo sobre todas essas coisas sem entrar nas particularidades de
cada um dos Estados onde devesse ser tomada alguma dessas deliberações,
falarei de maneira genérica, compatível com o assunto.
Jamais existiu um príncipe novo que desarmasse os seus súditos, mas, antes,
sempre que os encontrou desarmados, armou-os; isto porque, armando-os, essas
armas passam a ser tuas, tornam fiéis aqueles que te são suspeitos, os que eram
fiéis assim se conservam e de súditos tornam-se teus partidários. E, porque não
se pode armar todos os súditos, beneficiados aqueles que armas, com os outros
podes tratar mais seguramente; essa diversidade de tratamento que reconhecem
em seu favor os torna obrigados para contigo e os outros desculpar-te-ão,
julgando ser necessário tenham aqueles mais recompensas por estarem sujeitos
a maiores perigos e maiores obrigações. Mas quando os desarmas, começas a
ofendê-los, mostras deles duvidar, ou por vileza ou por desconfiança uma ou
outra destas opiniões concebe ódio contra ti. E, por não poderes ficar desarmado,
torna-se necessário que te voltes à milícia mercenária, que é daquela qualidade
que já foi dita e, quando fosse boa, não poderia sê-lo por forma a defender-te dos
inimigos poderosos e dos súditos suspeitos.
Porém, como disse, um príncipe novo num principado também novo, sempre
organizou as forças armadas e destes exemplos a história está repleta. Mas,
quando um príncipe conquista um novo Estado que, como membro, se agrega ao
antigo, então é necessário desarmar o conquistado, salvo aqueles que, nele,
foram teus partidários na conquista; estes mesmos, com o tempo e a
oportunidade, devem ser tornados amolecidos e efeminados, procedendo-se de
modo que as armas fiquem somente em poder de teus próprios soldados,
daqueles que, no Estado antigo, estavam junto de ti.
Os nossos antepassados e aqueles que eram considerados entendidos
costumavam dizer que Pistóia precisava ser mantida pela divisão do povo e Pisa
pelas fortalezas; e, por isso mesmo, em algumas regiões por eles conquistadas,
mantinham as discórdias entre os partidos para dominá-las mais facilmente. Isto,
naqueles tempos em que a Itália apresentava certo equilíbrio, devia ser útil. Mas
não creio se possa admitir tal como preceito hodierno, eis que não acredito
pudessem as divisões, alguma vez, acarretar qualquer benefício; ao contrário,
quando o inimigo se avizinha, as cidades divididas, necessariamente, perdem-se
logo, eis que sempre a parte mais fraca aderirá às forças externas e a outra não
poderá resistir.
Os venezianos, levados pelas razões acima mencionadas segundo acredito,
incentivavam as facções guelfas e gibelinas nas cidades a eles submetidas; e, se
bem nunca as deixassem chegar à luta, alimentavam entre elas essas
divergências para que, ocupados os cidadãos naquelas suas diferenças, não se
unissem contra eles. Isso, como se viu, não lhes aproveitou porque, derrotados
em Vailá, logo algumas daquelas cidades passaram a se insurgir e lhes tomaram
todo o Estado. Tais atitudes revelam fraqueza do príncipe, eis que em um
principado poderoso jamais serão permitidas semelhantes divisões, úteis somente
em tempo de paz, eis que por elas pode-se mais facilmente manejar os súditos;
mas, sobrevindo a guerra, tal sistema demonstra sua falácia.
Sem dúvida alguma, os príncipes se tornam grandes quando superam as
dificuldades e as oposições que lhes são antepostas; porém a fortuna,
principalmente quando quer tornar grande um príncipe novo, que tem mais
necessidade de adquirir reputação do que um hereditário, o faz nascer dos
inimigos e determina que lhe sejam opostos embaraços, a fim de que ele tenha
oportunidade de superá-los e, assim, possa subir mais alto pela escada que os
inimigos lhe oferecem, Por isso, muitos pensam que um príncipe hábil deve,
quando tenha ocasião, incentivar com astúcia alguma inimizade para, eliminada
esta, continuar a ascensão de sua grandeza.
Os príncipes, particularmente aqueles que são novos, têm encontrado mais
lealdade e maior utilidade nos homens que no início de seu governo foram
considerados suspeitos, do que nos que inicialmente eram seus confidentes.
Pandolfo Petrucci, príncipe de Siena, dirigia o seu Estado mais com aqueles que
lhe foram suspeitos do que com os que não o foram. Mas deste assunto não é
possível falar em caráter genérico, pois o mesmo varia segundo cada caso.
Somente direi isto: os homens que no início de um principado haviam sido
inimigos, sendo de condição que para manter-se precisam de apoio, o príncipe
poderá sempre com grande facilidade vir a conquistá-los; e eles tanto mais são
forçados a servi-lo com lealdade, quanto reconheçam ser-lhes necessário
cancelar com obras aquela má opinião que, a seu respeito, se fazia. Assim, o
príncipe deles obtém sempre maior utilidade do que daqueles que, servindo-o com
excessiva segurança, descuram de seus interesses.
Já que o assunto torna oportuno, não quero deixar de recordar aos príncipes que
tomaram um Estado novo pelo favor de alguns dos habitantes do mesmo deverem
considerar bem qual a razão que determinou assim agissem os que o
favoreceram; se a mesma não é afeição natural em relação a eles mas sim, se o
apoio decorreu do fato dos mesmos não estarem satisfeitos com o Estado
anterior, só com fadiga e grande dificuldade se poderá conservá-los amigos, dado
que é quase impossível possam vir a ser contentados. E, considerando bem os
exemplos que se extraem das coisas antigas e modernas, em razão disso, ver-seá
ser muito mais fácil ao príncipe tornar amigos aqueles homens que se
contentavam com o regime antigo e, portanto, eram seus inimigos, que aqueles
que, por descontentes, fizeram-se seus amigos e o favoreceram na conquista.
Tem sido costume dos príncipes, para poder manter seu Estado mais
seguramente, edificar fortalezas que sejam a brida e o freio postos aos que
desejassem enfrentá-los, bem como um refúgio seguro contra um ataque de
surpresa. Eu louvo esse proceder, porque usado desde tempos remotos; não
obstante messer Nicoló Vitelli, nos tempos atuais, destruiu duas fortalezas na
Cidade de Castelo para, assim, conservar o Estado. Guido Ubaldo, Duque de
Urbino, tendo retornado ao seu domínio de que havia sido expulso por César
Bórgia, destruiu desde os alicerces todas as fortalezas daquela província, por
entender que sem aquelas seria mais difícil perder novamente seu Estado. Os
Bentivoglio, retornados a Bolonha, usaram igual expediente. Portanto, as
fortalezas são úteis ou não, segundo os tempos; se te fazem bem por um lado,
prejudicam-te por outro. Pode-se explicar esta afirmativa pela forma a seguir
exposta.
O príncipe que tiver mais temor de seu povo do que dos estrangeiros, deve
construir as fortalezas; mas aquele que sentir mais medo dos estrangeiros que de
seu povo, deve abandoná-las. O castelo de Milão, edificado por Francisco Sforza,
fez e fará mais guerra à casa dos Sforza do que qualquer outra desordem naquele
Estado. Por isso, a melhor fortaleza que possa existir é o não ser odiado pelo
povo: mesmo que tenham fortificações elas de nada valem se o povo te odeia, eis
que a este, quando tome das armas, nunca faltam estrangeiros que o socorram.
Nos nossos tempos vê-se que as fortalezas não têm sido proveitosas a príncipe
algum, senão à Condessa de Forli quando foi morto o Conde Girolamo, seu
esposo, eis que a mesma, refugiando-se numa fortificação, pode fugir ao ímpeto
popular, esperar pelo socorro de Milão e recuperar o Estado; ademais, as
circunstâncias eram tais que o estrangeiro não podia socorrer o povo. Depois,
também para ela pouco valeram as fortalezas quando César Bórgia a atacou e o
povo, seu inimigo, aliou-se ao estrangeiro. Portanto, teria sido mais seguro para
ela, quer então, quer antes, não ser odiada pelo povo do que possuir fortalezas.
Consideradas assim todas estas questões, louvarei tanto os que fizerem como os
que não fizerem as fortalezas e censurarei aquele que, fiando-se nas fortificações,
venha a subestimar o fato de ser odiado pelo povo.
CAPÍTULO XXI
O QUE CONVÉM A UM PRÍNCIPE PARA SER ESTIMADO
(QUOD PRINCIPEM DECEAT UT EGREGIUS HABEATUR)
Nada faz estimar tanto um príncipe como as grandes empresas e o dar de si raros
exemplos. Temos, nos nossos tempos, Fernando de Aragão, atual rei de
Espanha. A este pode-se chamar, quase, príncipe novo, porque de um rei fraco
tornou-se, por fama e por glória, o primeiro rei dos cristãos; e, se considerardes
suas ações, as achareis todas grandiosas e algumas mesmo extraordinárias. No
começo de seu reinado, assaltou Granada e esse empreendimento foi o
fundamento de seu Estado. Primeiro ele o fez isoladamente, sem luta com outros
Estados e sem receio de ser impedido de tal; manteve ocupadas nesse
empreendimento as atenções dos barões de Castela que, pensando na guerra,
não cogitavam de inovações e ele, por esse meio, adquiria reputação e autoridade
sobre os mesmos sem que de tal se apercebessem. Pode manter exércitos com
dinheiro da Igreja e do povo e, com tão longa campanha, estabeleceu a
organização de sua milícia que, depois, tanto o honrou. Além disto, para poder
encetar maiores empreendimentos, servindo-se sempre da religião, dedicou-se a
uma piedosa crueldade expulsando e livrando seu reino dos marranos, ação de
que não pode haver exemplo mais miserável nem mais raro. Sob essa mesma
capa, atacou a África, fez a campanha da Itália e, ultimamente, assaltou a França;
assim, sempre fez e urdiu grandes empreendimentos, os quais em todo o tempo
mantiveram suspensos e admirados os ânimos dos súditos, ocupados em esperar
o êxito dessas guerras. Essas suas ações nasceram umas das outras, pelo que,
entre elas, não houve tempo para que os homens pudessem agir contra ele.
Muito apraz a um príncipe dar de si exemplos raros na forma de comportar-se
com os súditos, semelhantes àqueles que são narrados de messer Barnabò de
Milão, quando surge a oportunidade de alguém ter realizado alguma coisa
extraordinária de bem ou de mal na vida civil, obtendo meio de premiá-lo ou punilo
por forma que seja bastante comentada, Acima de tudo, um príncipe deve
empenhar-se em dar de si, com cada ação, conceito de grande homem e de
inteligência extraordinária.
Um príncipe é estimado, ainda, quando verdadeiro amigo e vero inimigo, isto é,
quando sem qualquer consideração se revela em favor de um, contra outro. Esta
atitude é sempre mais útil do que ficar neutro, eis que, se dois poderosos vizinhos
teus entrarem em luta, ou são de qualidade que vencendo um deles tenhas a
temer o vencedor, ou não. Em qualquer um destes dois casos será sempre mais
útil o definir-te e fazer guerra digna, porque no primeiro caso se não te definires
serás sempre presa do que vencer, com prazer e satisfação do que foi vencido, e
não terás razão ou coisa alguma que te defenda nem quem te receba. O vencedor
não quer amigos suspeitos ou que não o ajudem nas adversidades; quem perde
não te recebe por não teres querido correr a sua sorte de armas em punho.
Antíoco invadiu a Grécia a chamado dos etólios para expulsar os romanos. Enviou
embaixadores aos aqueus, amigos dos romanos, para concitá-los a ficarem
neutros, enquanto os romanos os persuadiam a tomar armas ao seu lado. Esta
matéria veio à deliberação do congresso dos aqueus, onde o legado de Antíoco
os induzia à neutralidade; a isto, o representante romano respondeu: Quod autem
isti dicunt non interponendi vos bello, nihil magis alienum rebus vestris est; sine
gratia, sine dignitate, praemium victoris eritis.
Sempre acontecerá que aquele que não é amigo procurará tua neutralidade e
aquele que é amigo pedirá que te definas com as armas. Os príncipes irresolutos,
para fugir aos perigos presentes, seguem na maioria das vezes o caminho da
neutralidade e, geralmente, caem em ruína. Mas, quando o príncipe se define
galhardamente em favor de uma das partes, se aquele a quem aderes vence,
mesmo que seja tão poderoso que venhas a ficar á sua discrição, ele tem
obrigação para contigo e está ligado a ti pela amizade; e os homens nunca são
tão desonestos que, com tamanha prova de ingratidão, possas vir a ser oprimido.
Além disso, as vitórias nunca são tão brilhantes que o vencedor não deva ter
qualquer consideração, principalmente para com o que é justo. Mas, se aquele a
quem aderes perder, serás amparado por ele e, enquanto puder, ajudar-te-á e
ficarás associado a uma fortuna que poderá ressurgir. No segundo caso, quando
aqueles que lutam são de classe que não devas temer o vencedor, ainda maior
prudência é aderir, pois causas a ruína de um com a ajuda de quem deveria
salvá-lo, se fosse sábio; vencendo, fica à tua mercê, e é impossível não vença
com o teu auxílio.
Note-se aqui que um príncipe deve ter a cautela de jamais fazer aliança com um
mais poderoso que ele para atacar os outros, senão quando a necessidade o
compelir, como se disse acima, porque, vencendo, torna-se seu prisioneiro; e os
príncipes devem fugir o quanto possam de ficar à discrição dos outros. Os
venezianos aliaram-se à França contra o duque de Milão, podendo ter evitado
essa aliança de que resultou a sua ruína. Mas, quando não se pode evitá-la
(como aconteceu aos florentinos quando o Papa e a Espanha levaram seus
exércitos a atacar a Lombardia), então deverá o príncipe aderir pelas razões
acima expostas. Nem julgue algum Estado poder adotar sempre partidos seguros,
devendo antes pensar ser obrigado a tomar, freqüentemente, partidos duvidosos;
vê-se na ordem das coisas que nunca se procura fugir a um inconveniente sem
incorrer em outro e a prudência consiste em saber conhecer a natureza desses
inconvenientes e tomar como bom o menos prejudicial.
Deve, ainda, um príncipe mostrar-se amante das virtudes, dando oportunidade
aos homens virtuosos e honrando os melhores numa arte. Ao mesmo tempo,
deve animar os seus cidadãos a exercer pacificamente as suas atividades no
comércio, na agricultura e em qualquer outra ocupação, de forma que o agricultor
não tema ornar as suas propriedades por receio de que as mesmas lhe sejam
tomadas, enquanto o comerciante não deixe de exercer o seu comércio por medo
das taxas; deve, além disso, instituir prêmios para os que quiserem realizar tais
coisas e os que pensarem em por qualquer forma engrandecer a sua cidade ou o
seu Estado. Ademais, deve, nas épocas convenientes do ano, distrair o povo com
festas e espetáculos. E, porque toda cidade está dividida em corporações de artes
ou grupos sociais, deve cuidar dessas corporações e desses grupos, reunir-se
com eles algumas vezes, dar de si prova de humanidade e munificência,
mantendo sempre firme, não obstante, a majestade de sua dignidade, eis que
esta não deve faltar em coisa alguma.
CAPÍTULO XXII
DOS SECRETÁRIOS QUE OS PRÍNCIPES TÊM JUNTO DE SI
(DE HIS QUOS A SECRETIS PRINCIPES HABENT)
Não é de pouca importância para um príncipe a escolha dos ministros, os quais
são bons ou não, segundo a prudência daquele. E a primeira conjetura que se faz
da inteligência de um senhor, resulta da observação dos homens que o cercam;
quando são capazes e fiéis, sempre se pode reputá-lo sábio, porque soube
reconhecê-los competentes e conservá-los. Mas, quando não são assim, sempre
se pode fazer mau juízo do príncipe, porque o primeiro erro por ele cometido
reside nessa escolha, Não houve ninguém que, conhecendo messer Antônio de
Venafro como ministro de Pandolfo Petruci, príncipe de Siena, deixasse de julgar
este senhor como extremamente valoroso pelo fato de ter aquele por ministro. E,
porque são de três espécies as inteligências, uma que entende as coisas por si, a
outra que discerne o que os outros entendem e a terceira que não entende nem
por si nem por intermédio dos outros, a primeira excelente, a segunda muito boa e
a terceira inútil, estavam todos acordes que se Pandolfo não se classificava no
primeiro grau, estava, necessariamente, no segundo; porque, toda vez que
alguém tem a capacidade de conhecer o bem e o mal que uma pessoa faça ou
diga, mesmo que por si não tenha capacidade para solucionar os problemas,
discerne as más e as boas obras do ministro, exalta estas e corrige aquelas, e o
ministro não pode esperar enganá-lo, pelo que se conserva bom.
Mas, para que um príncipe possa conhecer o ministro, existe um método que não
falha. Quando vires o ministro pensar mais em si do que em ti, e que em todas as
ações procura o seu interesse próprio, podes concluir que este jamais será um
bom ministro e nele nunca poderás confiar; aquele que tem o Estado de outrem
em suas mãos não deve pensar nunca em si, mas sim e sempre no príncipe, não
lhe recordando nunca coisa que não seja da sua competência. Por outro lado, o
príncipe, para conservá-lo bom ministro, deve pensar nele, honrando-o, fazendo-o
rico, obrigando-se-lhe, fazendo-o participar das honrarias e cargos, a fim de que
veja que não pode ficar sem sua proteção, e que as muitas honras não o façam
desejar mais honras, as muitas riquezas não o façam desejar maiores riquezas e
os muitos cargos o façam temer as mudanças. Quando, pois, os ministros, e os
príncipes com relação àqueles, estão assim preparados, podem confiar um no
outro; quando não for assim, o fim será sempre danoso ou para um ou para o
outro.
CAPÍTULO XXIII
COMO SE AFASTAM OS ADULADORES
(QUOMODO ADULATORES SINT FUGIENDI)
Não quero deixar de tratar de um ponto importante, de um erro do qual os
príncipes só com muita dificuldade se defendem, se não são de extrema
prudência ou se não fazem boa escolha. Refiro-me aos aduladores, dos quais as
cortes estão repletas, dado que os homens se comprazem tanto nas suas coisas
próprias e de tal modo se iludem, que com dificuldade se defendem desta peste e,
querendo defender-se, há o perigo de tornar-se menosprezado. Não há outro
meio de guardar-se da adulação, a não ser fazendo com que os homens
entendam que não te ofendem dizendo a verdade; mas, quando todos podem
dizer-te a verdade, passam a faltar-te com a reverência.
Portanto, um príncipe prudente deve proceder por uma terceira maneira,
escolhendo em seu Estado homens sábios e somente a eles deve dar a liberdade
de falar-lhe a verdade daquilo que ele pergunte e nada mais. Deve consultá-los
sobre todos os assuntos e ouvir as suas opiniões; depois, de liberar por si, a seu
modo, e, com estes conselhos e com cada um deles, portar-se de forma que
todos compreendam que quanto mais livremente falarem, tanto mais facilmente
serão aceitas suas opiniões. Fora aqueles, não querer ouvir ninguém, seguir a
deliberação adotada e ser obstinado nas suas decisões. Quem procede por outra
forma, ou é precipitado pelos aduladores, ou muda freqüentemente de opinião
pela variedade dos pareceres; daí resulta a sua desestima.
Quero, a este propósito, aduzir um exemplo atual. Pe. Lucas, homem do atual
Imperador Maximiliano, falando de Sua Majestade, disse que ele não se
aconselhava com ninguém e não fazia nada a seu modo; isso resultava de ter
costume contrário ao acima exposto. Porque o Imperador é homem discreto, não
comunica a ninguém os seus desígnios, não pede parecer; mas, como ao serem
postos em prática começam a ser conhecidos e descobertos, começam, a ser
contrariados por aqueles que o cercam, e ele, como é homem de opinião fraca, os
desfaz. Dai resulta que as coisas que faz num dia são destruídas no outro e que
não se entenda nunca o que ele quer ou o que deseja fazer, não podendo pessoa
alguma basear-se em suas deliberações.
Um príncipe, portanto, deve aconselhar-se sempre, mas quando ele queira e não
quando os outros desejem; antes, deve tolher a todos o desejo de aconselhar-lhe
alguma coisa sem que ele venha a pedir. Mas deve ser grande perguntador e,
depois, acerca das coisas perguntadas, paciente ouvinte da verdade; antes,
notando que alguém por algum respeito não lhe diga a verdade, deve mostrar
aborrecimento. Há muitos que entendem que o príncipe que dá de si opinião de
prudente, seja assim considerado não pela sua natureza, mas pelos bons
conselhos que o rodeiam, porém, sem dúvida alguma, estão enganados, eis que
esta é uma regra geral que nunca falha: um príncipe que não seja sábio por si
mesmo, não pode ser bem aconselhado, a menos que por acaso confiasse em
um só que de todo o governasse e fosse homem de extrema prudência. Este caso
poderia bem acontecer, mas duraria pouco, porque aquele que efetivamente
governasse, em pouco tempo lhe tomaria o Estado; mas, aconselhando-se com
mais de um, um príncipe que não seja sábio, não terá nunca os conselhos
uniformes e não saberá por si mesmo harmonizá-los. Cada conselheiro pensará
por si e ele não saberá corrigi-los nem inteirar-se do assunto. E não é possível
encontrar conselheiros diferentes, porque os homens sempre serão maus se por
uma necessidade não forem tornados bons. Consequentemente se conclui que os
bons conselhos, venham de onde vierem, devem nascer da prudência do príncipe,
e não a prudência do príncipe resultar dos bons conselhos.
CAPÍTULO XXIV
POR QUE OS PRÍNCIPES DA ITÁLIA PERDERAM SEUS ESTADOS
(CUR ITALIAE PRINCIPES REGNUM AMISERUNT)
As coisas já referidas, observadas prudentemente, fazem um príncipe novo
parecer antigo e logo o tornam mais seguro e mais firme no Estado do que se aí
fosse um príncipe antigo. Porque um príncipe novo é muito mais observado nas
suas ações do que um hereditário; e, quando estas são reconhecidas como
virtuosas, atraem mais fortemente os homens e os ligam a si muito mais que a
tradição do sangue. Porque os homens são levados muito mais pelas coisas
presentes do que pelas passadas e, quando nas presentes encontram o bem,
ficam satisfeitos e nada mais procuram. Antes, assumirão toda sua defesa, desde
que não falte à palavra nas outras coisas. Assim, terá a dupla glória de ter dado
início a um principado novo e de tê-lo ornado e fortalecido com boas leis, boas
armas e bons exemplos; por outro lado, aquele que, tendo nascido príncipe, veio
a perder o Estado por sua pouca prudência, terá duplicada a sua vergonha.
E, se se consideraram aqueles senhores que, na Itália, perderam seus Estados
nos nossos tempos, como o rei de Nápoles, o duque de Milão e outros, achar-se-á
neles, primeiro um defeito comum quanto às armas, pelas razões que já foram
expostas; depois, ver-se-á que alguns deles, ou tiveram a inimizade do povo, ou,
tendo o povo por amigo, não souberam garantir-se contra os grandes, eis que
sem estes defeitos não se perdem os Estados que tenham tanta força que
possam levar a campo um exército. Felipe da Macedônia, não o pai de Alexandre,
mas o que foi vencido por Tito Quinto, tinha um Estado não muito extenso, em
comparação com a grandeza dos romanos e da Grécia que o assaltaram; não
obstante, por ser homem de espírito militar, que sabia ter o povo como amigo e
garantir-se contra os grandes, sustentou por muitos anos a guerra contra aqueles;
e se, afinal, perdeu o domínio de algumas cidades, restou-lhe todavia o reino.
Portanto, estes nossos príncipes que tinham permanecido muitos anos em seus
principados para depois perdê-los, não podem acusar a sorte, mas sim a sua
própria ignávia, pois, não tendo nunca, nos tempos pacíficos, pensado que estes
poderiam mudar (o que é defeito comum dos homens na bonança não se
preocupar com a tempestade) quando chegaram os tempos adversos
preocuparam-se em fugir e não em defender-se, esperando que as populações,
cansadas da insolência dos vencedores, os chamassem de volta. Esse partido é
bom quando os outros falham, mas é muito mau o ter abandonado os outros
remédios por esse, pois não irás cair apenas por acreditar encontrar quem te
levante; isso não acontece ou, se acontecer, não será para tua segurança, dado
que aquela defesa torna-se vil se não depender de ti. As defesas somente são
boas, certas e duradouras quando dependem de ti próprio e da tua virtude.
CAPÍTULO XXV
DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE QUE
MODO SE LHE DEVA RESISTIR
(QUANTUM FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT, ET QUOMODO ILLI SIT
OCCURREN DUM)
Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam
governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua
prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia
pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte.
Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação
das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer
conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor
dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo
poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas
que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses
rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destróem as
árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante
dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem
assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma,
tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois,
ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado
nem tão danoso.
Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio onde não
existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto
onde sabe não foram construídos diques e anteparos para contê-la, E, se
considerardes a Itália, que é a sede destas variações e aquela que lhes deu
motivo, vereis ser ela uma região sem diques e sem qualquer anteparo, eis que se
protegida por convenientes forças militares, como a Alemanha, a Espanha e a
França, ou esse transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez,
ou não teria ocorrido. Penso que isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer
acerca da oposição que se pode antepor à sorte em geral.
Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por que se vê um príncipe hoje em
franco e feliz progresso e amanhã em ruína, sem que tenha mudado sua natureza
ou as suas qualidades; isso resulta, segundo creio, primeiro das razões que foram
longamente expostas mais atrás, isto é, que o príncipe que se apoia totalmente na
sorte arruina-se segundo as variações desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que
acomode o seu modo de proceder com a natureza dos tempos, da mesma forma
que penso seja infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em choque com o
momento que atravessa.
Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que os conduz ao fim que cada
um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas, procedem por formas diversas: um
com cautela, o outro com ímpeto, um com violência, o outro com astúcia, um com
paciência e o outro por forma contrária; e cada um, por esses diversos meios,
pode alcançar o objetivo.
Vê-se, ainda, de dois indivíduos cautos, um alcançar o seu objetivo, o outro não, e
da mesma maneira, dois deles alcançarem igualmente fim feliz com duas
tendências diversas, sendo, por exemplo, um cauteloso e o outro impetuoso; isso
resulta apenas da natureza dos tempos que se adaptam ou não ao proceder dos
mesmos. Daí decorre aquilo que eu disse, isto é, que dois indivíduos agindo por
formas diversas podem alcançar o mesmo efeito, ao passo que de dois que
operem igualmente, um alcança o seu fim e o outro não.
Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém se
orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se apresentam de
modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a felicidade; mas, se os
tempos e as circunstâncias se modificam, ele se arruina, visto não ter mudado seu
modo de proceder. Nem é possível encontrar homem tão prudente que saiba
acomodar-se a isso, seja porque não pode se desviar daquilo a que a natureza o
inclina, seja ainda porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um
caminho, não se consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o homem
cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em
conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo com os
tempos e com as coisas, a sua fortuna não se modificaria.
O Papa Júlio II, em todas as suas coisas procedeu impetuosamente e encontrou
tanto os tempos como as circunstâncias coincidentes com aquele seu modo de
proceder, pelo que sempre alcançou feliz êxito. Considerai a primeira campanha
que encetou contra Bolonha, sendo ainda vivo messer Giovanni Bentivoglio. Os
venezianos estavam descontentes; o rei da Espanha, nas mesmas condições;
com a França ainda discutia tal empresa. Isso não obstante, com ferocidade e
ímpeto, deu início pessoalmente àquela expedição que, uma vez iniciada, fez com
que ficassem suspensos e parados tanto a Espanha como os venezianos, estes
por medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o reino de Nápoles, de outra
parte, arrastou consigo o rei de França porque, vendo-o esse rei em campanha e
desejando torná-lo seu amigo para aviltar os venezianos, julgou não poder negarlhe
a sua gente sem injuriá-lo por forma manifesta.
Realizou Júlio, portanto, com seu movimento impetuoso, aquilo que jamais outro
pontífice, com toda a humana prudência, teria feito, pois se ele, para partir de
Roma, tivesse esperado estar com todos os planos estabelecidos e todas as
coisas assentadas, como qualquer outro Papa teria feito, nunca teria obtido êxito,
eis que o rei de França teria apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam
incutido mil receios. Desejo omitir as outras suas ações, todas semelhantes e
todas com feliz êxito, sendo que a brevidade da vida não o deixou experimentar o
contrário, dado que se tivessem sobrevindo tempos em que se tornasse
necessário agir com cautelas, surgiria a sua ruína, pois jamais ele teria desviado
daquele modo de proceder a que a natureza o inclinava.
Concluo, pois, que variando a sorte e permanecendo os homens obstinados nos
seus modos de agir, serão felizes enquanto aquela e estes sejam concordes e
infelizes quando surgir a discordância. Considero seja melhor ser impetuoso do
que dotado de cautela, porque a fortuna é mulher e consequentemente se torna
necessário, querendo dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa
vencer por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém,
como mulher, sempre é amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais
afoitos e com maior audácia a dominam.
CAPÍTULO XXVI
EXORTAÇÃO PARA PROCURAR TOMAR A ITÁLIA E LIBERTÁ-LA
DAS MÃOS DOS BÁRBAROS
(EXHORTATIO AD CAPESSENDAM ITALIAM IN LIBERTATEMQUE A
BARBARIS VINDICANDAM)
Consideradas pois, todas as coisas já expostas, pensando comigo mesmo se no
momento presente, na Itália, corriam tempos capazes de honrar um príncipe novo
e se havia matéria que assegurasse a alguém, prudente e valoroso, a
oportunidade de nela introduzir nova organização que a ele desse honra e fizesse
bem a todo o povo, quer me parecer concorrerem tantas circunstâncias favoráveis
a um príncipe novo que não sei qual o tempo que poderia ser mais adequado para
isto. E se, como já disse, para se conhecer a virtude de Moisés foi necessário que
o povo de Israel estivesse escravizado no Egito, para conhecer a grandeza do
ânimo de Ciro, que os persas fossem oprimidos pelos medas, e o valor de Teseu,
que os atenienses estivessem dispersos, também no presente, querendo
conhecer a virtude de um espírito italiano, seria necessário que a Itália se
reduzisse ao ponto em que se encontra no momento, que ela fosse mais
escravizada do que os hebreus, mais oprimida do que os persas, mais desunida
do que os atenienses, sem chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada,
invadida, e tivesse suportado ruína de toda sorte.
Se bem tenha surgido, até aqui, certo vislumbre de esperança em relação a algum
príncipe, parecendo poder ser julgado como dirigido por Deus para redenção da
Itália, contudo foi visto depois como, no apogeu de suas ações, foi abandonado
pela sorte. De modo que, tornada sem vida, espera ela por aquele que cure as
suas feridas e ponha fim aos saques da Lombardia, às mortandades no Reino de
Nápoles e na Toscana, e a cure daquelas suas chagas já de há muito
enfistuladas. Vê-se como ela implora a Deus lhe envie alguém que a redima
dessas crueldades e insolências bárbaras. Vê-se, ainda, toda ela pronta e
disposta a seguir uma bandeira, desde que haja quem a empunhe.
Nem se vê no presente em quem possa ela confiar a não ser na vossa ilustre
casa, a qual, com a sua fortuna e virtude, favorecida por Deus e pela Igreja, da
qual é agora príncipe, poderá tornar-se chefe desta redenção. Isso não será muito
difícil, se procurardes seguir as ações e a vida dos acima indicados. E, se bem
aqueles homens sejam raros e maravilhosos, sem dúvida foram homens, todos
eles tiveram menor ocasião que a presente: porque os empreendimentos dos
mesmos não foram mais justos nem mais fáceis do que este, nem foi Deus mais
amigo deles do que de vós. É de grande justiça o que digo: iustum enim est
bellum quibus necessarium, et pia arma ubi nulla nisi in armis spes est. Aqui há
uma grande disposição, e onde esta existe não pode haver grande dificuldade,
desde que se imite o modo de agir daqueles que apontei como exemplo. Além
disso, aqui se vêem acontecimentos extraordinários emanados de Deus: o mar se
abriu, uma nuvem revelou o caminho, a pedra verteu água, aqui choveu o maná;
todas as coisas concorreram para a vossa grandeza. O restante deve ser feito por
vós. Deus não quer fazer tudo, para não nos tolher o livre arbítrio e parte daquela
glória que compete a nós. E não é de admirar se algum dos já citados italianos
não tenha podido fazer aquilo que se pode esperar faça a vossa ilustre casa, e se,
em tantas revoluções da Itália e em tantas manobras de guerra, parecer sempre
que nesta a virtude militar esteja extinta. Isso resulta de que as suas antigas
instituições não eram boas e não houve quem soubesse encontrar outras; e
nenhuma coisa faz tanta honra a um príncipe novo, quanto as novas leis e os
novos regulamentos por ele elaborados. Estes, quando são bem fundados e em si
encerrem grandeza, tornam o príncipe digno de reverência e admiração; na Itália
não faltam motivos para introduzir-se qualquer reforma. Aqui existe grande valor
no povo, enquanto ele falta nos chefes. Observei nos duelos e nos combates
individuais o quanto os italianos são superiores na força, na destreza ou no
engenho. Mas, quando se passa para os exércitos, não comparecem. E tudo
resulta da fraqueza dos chefes, porque aqueles que sabem não são obedecidos,
e todos julgam saber, não tendo surgido até agora alguém que tenha sabido se
sobressair pela virtude ou pela fortuna de forma a que os outros cedam. Daí
decorre que, em tanto tempo, em tantas guerras feitas nos últimos vinte anos,
sempre que se formou um exército inteiramente italiano o mesmo deu mau
exemplo, do que dão prova Taro, depois Alexandria, Cápua, Gênova, Vailá,
Bolonha, Mestri.
Querendo, pois, a vossa ilustre casa seguir aqueles homens excelentes e redimir
suas províncias, é necessário, antes de toda e qualquer outra coisa, como
verdadeiro fundamento de qualquer empreendimento, prover-se de tropas
próprias, pois não se pode conseguir outras mais fiéis e mais seguras, nem
melhores soldados. E, ainda que cada um deles seja bom, todos juntos tornar-seão
ainda melhores, quando se virem comandados pelo seu príncipe e por este
honrados e mantidos. É necessário, portanto, preparar esses exércitos, para
poder, com a virtude itálica, defender-se dos estrangeiros.
E, se bem as infantarias suíças e espanholas sejam consideradas terríveis, em
ambas existem defeitos, pelo que um terceiro tipo de infantaria poderia não
somente opor-se-lhes, mas confiar em superá-las. Porque os espanhóis não
podem enfrentar a cavalaria e os suíços deverão ter medo dos infantes, quando
no combate os encontrarem obstinados como eles. Já se viu, e vê-se ainda, os
espanhóis não poderem enfrentar uma cavalaria francesa e os suíços serem
derrotados por uma infantaria espanhola. E, se bem deste último caso não se
tenha tido plena prova, contudo viu-se uma amostra na campanha de Ravena,
quando as infantarias espanholas se defrontaram com os batalhões alemães, que
têm a mesma organização dos suíços; aí os espanhóis, com a agilidade do corpo
e auxílio dos seus pequenos escudos, haviam-se colocado debaixo dos chuços
alemães e estavam certos de feri-los e matá-los sem que os mesmos tal
pudessem impedir; realmente, não fosse a cavalaria que os atacou, teriam morto
todos os inimigos. Pode-se, pois, conhecido o defeito de uma e de outra dessas
infantarias, organizar uma diferente, que resista à cavalaria e não tenha medo dos
infantes, o que dará qualidade superior aos exércitos e imporá a mudança de
táticas. Estas são daquelas coisas que, reformadas, dão reputação e grandeza a
um príncipe novo.
Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália conheça,
depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir com que amor ele
seria recebido em todas aquelas províncias que têm sofrido por essas invasões
estrangeiras, com que sede de vingança, com que obstinada fé, com que piedade,
com que lágrimas. Quais portas se lhe fechariam? Quais povos lhe negariam
obediência? Qual inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A
todos repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta
incumbência com aquele ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as
causas justas, a fim de que, sob sua insígnia, esta pátria seja nobilitada e sob
seus auspícios se verifique aquele dito de Petrarca:
Virtude contra Furor
Tomará Armas; e Faça o Combater Curto
Que o Antigo Valor
Nos Itálicos Corações Ainda não é Morto.
CARTA DE MACHIAVELLI A FRANCESCO VETTORI, EM ROMA
(RELATIVA À OBRA IL PRÍNCIPE)
Magnifico oratori Florentino Francisco Vectori apud Summum Pontificem et
benefactori suo.
Romae,
Magnífico embaixador. Tardias jamais foram as graças divinas. Digo isto porque
me parecia não ter perdido mas sim estar esmaecida a vossa graça, tendo estado
vós muito tempo sem escrever-me; estava em dúvida de onde pudesse vir a razão
de tal. E dava pouca importância a todas as causas que vinham à minha mente,
salvo quando pensava que tivésseis retraído de escrever-me, porque vos tivesse
sido escrito que eu não fosse bom guardião de vossas cartas; e eu sabia que,
afora Filippo e Pagolo, outros, de minha parte, não as tinham visto. Readquiri
essa graça pela vossa última de 23 do mês passado, pelo que fico contentíssimo
ao ver quão ordenada e calmamente exerceis essa função pública, e eu vos
concito a continuar assim, porque quem deixa as suas comodidades pelas
comodidades dos outros, perde as suas e destes não recebe gratidão. Desde que
a fortuna quer dispor todas as coisas, é preciso deixá-la fazer, ficar quieto e não
lhe criar embaraço, esperando que o tempo lhe permita fazer alguma coisa pelos
homens; então, será bem suportardes maiores fadigas, zelar melhor das coisas, e
a mim convirá partir da vilas e dizer: eis-me aqui. Não posso, portanto, desejando
render-vos iguais graças, dizer nesta minha carta outra coisa que não aquilo que
seja a minha vida, e se julgardes tal que valha trocá-la com a vossa, ficarei
contente em mudá-la.
Aqui estou, na vila; depois que ocorreram aqueles meus últimos casos, não estive,
somando todos, vinte dias em Florença. Até aqui tenho apanhado tordos à mão.
Levantava-me antes do amanhecer, preparava a armadilha, ia-me além com um
feixe de gaiolas ao ombro, que até parecia o Getas quando o mesmo voltava do
porto com os livros de Anfitrião; apanhava no mínimo dois e no máximo seis
tordos. E, assim, passei todo o mês de setembro. Depois esse passatempo, ainda
que desprezível e estranho, veio a faltar com desgosto meu. Dir-vos-ei qual a
minha vida agora. Levanto-me de manhã com o sol e vou a um meu bosque que
mandei cortar, onde fico duas horas a examinar o trabalho do dia anterior e a
passar o tempo com aqueles cortadores que estão sempre às voltas com algum
aborrecimento entre si ou com os vizinhos. Acerca deste bosque eu teria a dizervos
mil belas coisas que me aconteceram, bem como de Frosino de Panzano e
dos outros que queriam desta lenha. Frosino, principalmente, mandou buscar
certa quantidade sem dizer-me nada e, na ocasião do pagamento, queria reter
dez liras que disse ter ganho de mim, há quatro anos, num jogo de cricca em casa
de Antônio Guicciardini. Comecei a fazer o diabo: queria acusar o carroceiro, que
fora ali mandado por ele, como ladrão. Enfim Giovanni Machiaveili interveio e nos
pôs de acordo. Batista Guicciardini, Filippo Ginori, Tommaso dei Bene e alguns
outros cidadãos, quando aqueles maus ventos sopravam, cada um me adquiriu
uma ruma de lenha. Prometi a todos e mandei uma a Tommaso, a qual chegou a
Florença pela metade, porque, para empilhá-la, ali estavam ele, a mulher, as
criadas e os filhos, os quais pareciam o Gabburra quando na quinta-feira, com
seus rapazes, abate um boi. De modo que, visto em quem eu depositava o meu
ganho, disse aos outros que não tinha mais lenha; todos se encolerizaram e
agastaram comigo, especialmente Batista, que inclui esta entre as demais
desgraças de Prato.
Saindo do bosque, vou a uma fonte e, daqui, ao meu viveiro de tordos. Levo um
livro comigo, ou Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, Tíbulo, Ovidio
e semelhantes; leio aquelas suas amorosas paixões, e aqueles seus amores
lembram-me os meus; deleito-me algum tempo nestes pensamentos. Depois, vou
pela estrada até à hospedaria; falo com os que passam, pergunto notícias das
suas cidades, ouço muitas coisas e noto vários gostos e fantasias dos homens.
Enquanto isso, chega a hora do almoço, quando com a minha família como
aqueles alimentos que esta pobre vila e este pequeno patrimônio comportam.
Terminado o almoço, retorno à hospedaria; aqui, geralmente, estão o
estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com estes eu me
rebaixo o dia todo jogando cricca, trichtach, e, depois, daí nas cem mil contendas
e infinitos acintes com palavras injuriosas; a maioria das vezes se disputa uma
insignificância e, contudo, somos ouvidos gritar por São Casciano. Assim,
envolvido entre estes piolhos, cubro o cérebro de bolor e desabafo a malignidade
de minha sorte, ficando contente se me encontrásseis nesta estrada para ver se
essa malignidade se envergonha.
Chegada a noite, retorno para casa e entro no meu escritório; na porta, dispo a
roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas dignas de rei e da corte e,
vestido assim condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens do
passado onde, por eles recebido amavelmente, nutro-me daquele alimento que é
unicamente meu, para o qual eu nasci; não me envergonho ao falar com eles e
perguntar-lhes das razões de suas ações. Eles por sua humanidade, me
respondem, e eu não sinto durante quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as
aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a morte: eu me integro
inteiramente neles. E, porque Dante disse não haver ciência sem que seja retido o
que foi apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua conversação, fiz capital, e
compus um opúsculo De Principatibus, onde me aprofundo o quanto posso nas
cogitações deste assunto, discutindo o que é principado, de que espécies são,
como são adquiridos, como se mantêm, porque são perdidos. Se alguma vez vos
agradou alguma fantasia minha, esta não vos deveria desagradar; e um príncipe,
principalmente um príncipe novo, deveria aceitar esse trabalho: por isso eu o
dedico à magnificência de Juliano. Filippo Casavecchia o viu e vos poderá relatar
mais ou menos como é e das conversas que tive com ele, se bem que
freqüentemente eu aumente e corrija o texto.
Vós desejaríeis, magnífico embaixador, que eu deixasse esta vida e fosse gozar
convosco a vossa. Eu o farei de qualquer maneira; mas o que me retém por ora
são certos negócios que dentro de seis semanas terei ultimado. O que me deixa
ficar em dúvida é que estão ai aqueles Soderini, aos quais eu seria forçado,
estando aí, a visitar e a falar. Receio que ao meu retorno, pensando apear em
casa, viesse a desmontar no Bargiello, eis que, se bem este Estado" tenha mui
sólidas bases e grande segurança, ele é novo e, por isso, cheio de suspeitas; nem
faltam sabidos que, para aparecer, como Pagolo Bertini, meteriam outros na
prisão e deixariam a meu cargo os aborrecimentos. Peço-vos me tranqüilizeis
deste receio e, depois, dentro do tempo mencionado, irei visitar-vos de qualquer
modo.
Discuti com Filippo sobre esse meu opúsculo, se convinha dá-lo ou não e, sendo
acertado dá-lo, se era mais conveniente que eu o levasse ou que o mandasse.
Não me fazia dá-lo o receio de que Juliano não o lesse e que esse Ardinghelli se
honrasse com esse meu último trabalho. Por outro lado, dá-lo satisfaria a
necessidade que me oprime, porque estou em ruína e não posso permanecer
assim por muito tempo, sem que me torne desprezível por pobreza, isso além do
desejo que teria de que esses senhores Medici passassem a utilizar-me, se
tivesse de começar a fazer-me rolar uma pedra; porque, se depois não
conseguisse ganhar o seu favor, lamentar-me-ia de mim mesmo, eis que, quando
fosse lido o opúsculo, ver-se-ia que os quinze anos que estive no estudo da arte
do Estado, não os dormi nem brinquei, devendo todo homem achar agradável
servir-se de alguém que, a custas de outros, fosse cheio de experiência. E da
minha fidelidade não se deveria duvidar porque, tendo sempre observado a
lealdade, não devo aprender agora a rompê-la; quem foi fiel e bom durante
quarenta e três anos, que eu os tenho, não deve poder mudar sua natureza; da
minha lealdade e bondade é testemunho a minha pobreza.
Desejaria, pois, que vós ainda me escrevêsseis aquilo que sobre este assunto vos
pareça. A vós me recomendo. Seja feliz.
10 de Dezembro de 1513
NICOLÓ MACHIAVELLI
Florença.
© LCC Publicações Eletrônicas

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