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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

TRAGEDIA DO SITIO CALDEIRÃO NORTE DO BRASIL

UMA DAS HISTORIAS MAIS CAMUFLADAS DO NORTE DO BRASIL A TRAGÉDIA DA COMUNIDADE CAMPONESA IGUALITÁRIA DO SÍTIO CALDEIRÃO
Tarcísio Marcos Alves*
É no mínimo estranho que autores de livros didáticos de História do Brasil, mesmo os cearenses, não ser refiram - nem sequer em nota de "pé-de-página" - ao destino trágico que teve a comunidade camponesa religiosa do Sítio Caldeirão, liderada pelo beato José Lourenço Gomes da Silva e destruída por forças policiais em 1937, no Crato, Ceará!...
Mesmo os historiadores que escrevem para a comunidade acadêmica e para especialistas, minimizam o conflito: na maioria dos casos - aqueles que escrevem sobre o Juazeiro do Norte e o Padre Cícero Romão Batista - , tratam o fenômeno apenas nos seus aspectos folclóricos, centrando os seus relatos na estória do boi "Mansinho" e dos seus pretensos "milagres". Essas fantasiosas estórias sobre o referido touro, fruto de boatos que circularam na época, já foram negadas por Floro Bartholomeu da Costa, pouco tempo depois de sua divulgação. No seu discurso na Câmara dos Deputados Federais, em 1923, afirmou que "essa história do ‘Touro Zebu’, não é semelhante a do ‘Boi Ápis’, nem esse pobre animal (...) corria risco de se implantar como ‘symbolo de redenção’, (...) pois, quando se procurava apenas a verdade sobre os boatos de que o boi fazia ‘milagres’ - ninguém sabia informar, a começar pelos proprietários do sítio onde Zé Lourenço residia." (Costa, 1923:711-712).
É fácil, no entanto, desvendar os motivos subjacentes a tais "esquecimentos" dos fatos pelos historiadores e cronistas: o massacre do Caldeirão, para além de ter sido mais uma perseguição e beatos e cangaceiros nos sertões nordestinos, oriundos de uma tradição de violências que remontam aos séculos XVIII e XIX, com o apoio dos coronéis latifundiários e da Igreja Católica que, eivada dos rigorosos preceitos tridentinos - condenava e perseguia duramente quaisquer "seitas" religiosas heterodoxas - , foi tão cruel quanto desnecessário. Pois, além de destruírem - assim como o fizeram com Canudos - uma comunidade de camponeses pacíficos pelo fogo e pelas armas, utilizaram, pela primeira vez na história do Brasil, bombardeios aéreo contra populações civis indefesas!...
Estranhamente, até os historiadores "brasilianistas" que escreveram sobre o assunto omitiram ou deformaram os fatos. Ralph Della Cava, por exemplo, apesar de demonstrar simpatia pelo beato José Lourenço, no seu livro Milagre em Joaseiro, limita-se a comentar que, "infelizmente a história de José Lourenço tem sido contada e recontada de forma anedótica e sectária"(Cava, 1976:220). E, apesar disso, segue o mesmo caminho trilhado por seus criticados antecessores: narra apenas os fatos folclóricos e "anedóticos" ligados ao boi "mansinho"...
Um outro eminente historiador norte-americano que se referiu ao beato José Lourenço, teve o mérito de associar os acontecimentos à repressão do Estado Novo. Trata-se de Robert Levine, que, no seu livro O Regime de Vargas - os anos críticos - 1934-1938, assim se referiu aos fatos: "Tropas federais invadiram o povoado cearense de Caldeirão e destruíram uma seita comunitária semi-religiosa sob a alegação, provavelmente falsa, de que dava agasalho a refugiados dos levantes de Natal e do Recife." E lembra, em nota no final do capítulo, que o Jornal "New York Times", de 16 de setembro de 1936, p. 14, noticiou os fatos com as seguintes palavras: "As razias continuaram por todo o ano de 1937." (Levine, 1980:219 e 241).
O autor não faz, no entanto, nenhuma referência ao bombardeio na Serra do Araripe...
Recentemente, o mesmo autor publicou no Brasil o seu monumental livro "O Sertão Prometido: o massacre de Canudos", onde volta a referir-se aos acontecimentos referentes ao Caldeirão. Estranhamente, no entanto, Levine inicia o relato cometendo um equívoco imperdoável, ao afirmar que o Sítio Caldeirão era "uma fazenda abandonada no município baiano de Casa Nova, onde o beato José Lourenço, um antigo ajudante do Padre Cícero, capitaneava a construção de uma nova Juazeiro." (Aqui o autor esqueceu que o Sítio Caldeirão localiza-se no Crato-CE, e que em Casa Nova, na Bahia, ocorreu o movimento camponês religioso de Pau-de-Colher, confundindo ambos...). Desta vez, entretanto, o autor refere-se ao bombardeio, porém demonstrando total desconhecimento da história e da operação militar desencadeada contra a comunidade em 1936 e 1937. Segundo o seu relato, o bombardeio teria sido feito sobre as casas da comunidade do Caldeirão: "uma força de 150 homens da polícia do Ceará iniciou o ataque com auxílio de duas aeronaves, que destruíram à bala e a bombas os telhados das casas. (...) A comunidade agrícola foi completamente queimada." (Levine, 1995:317).
O fato real: o bombardeio não foi feito sobre as casas da comunidade do Caldeirão, que na época já estava destruído, mas sobre um grupo de cerca de mil seguidores do beato José Lourenço que estavam refugiados na Serra do Araripe, onde, indefesos, foram massacrados por uma esquadrilha composta de três aviões, que metralharam e bombardearam-nos impiedosamente...
Foi exatamente para tentar corrigir tão disparatadas e errôneas interpretações sobre o fenômeno da comunidade camponesa do Caldeirão, que consideramos de significativa importância, para uma melhor compreensão do papel histórico das massas de camponeses miseráveis do sertão nordestino, que resolvemos sintetizar a trágica história de Santa Cruz do Deserto.
José Lourenço chegou ao Juazeiro do Norte na época dos "milagres" (1889), quando a aldeia fervilhava de romeiros que afluíam de todas as regiões sertanejas para a terra do Padre Cícero Romão Batista. Duas coisas importantes os atraíam: as terras férteis do Vale do Cariri e a certeza de alcançarem a salvação na cidade do "santo milagreiro". O próprio Pe. Cícero constatou o fato, ao afirmar que "Juazeiro tem sido um refúgio dos náufragos da vida" (Cava, 1976:212). É que para lá iam multidões de miseráveis, refugiados das regiões castigadas pelas secas...
O beato José Lourenço logo integrou-se na aldeia e tornou-se penitente. Morou alguns anos no Juazeiro e depois foi com a família viver no sítio Baixa D’Anta. Lá começaram a desenvolver uma experiência de trabalho coletivo com base no mutirão, o que levou a um esboço de organização de uma comunidade camponesa de cunho cooperativista.
Mas, o que mais marcou a sua vida no sítio e o tornou conhecido na região, foi o episódio do boi "Mansinho". Tratava-se de um garrote que o Pe. Cícero ganhara de presente e dera ao beato para criar. Como era um animal pertencente ao Pe. Cícero, toda a comunidade dedicava um tratamento especial ao boi. Em pouco tempo surgiram boatos de que o boi "Mansinho" estava fazendo milagres...
Por essa época (cerca de 1920), além das perseguições religiosas contra o Pe. Cícero, a imprensa fazia uma feroz campanha contra Floro Bartholomeu. Este passou a ser acusado pelo Deputado Federal Morais e Barros como o "Deputado de bandidos e fanáticos". Sob pressão, Floro Bartholomeu foi obrigado a agir: mandou prender o beato José Lourenço e matar o boi "santo".
Solto e humilhado, com fama de "fanático", José Lourenço voltou para o sítio Baixa D’Anta, onde viveu mais alguns anos, quando o proprietário da terra vendeu a propriedade e expulsou-o de lá. O beato passou algum tempo em Juazeiro, onde, pelas suas práticas religiosas, adquiriu fama de "homem santo" e passou a ser tratado como "beato". Em 1926 retirou-se com algumas famílias para o Sítio Caldeirão dos Jesuítas, terra pertencente ao Pe. Cícero. O padre entregou as terras ao beato quando o seu Testamento já estava pronto, no qual doara todas as suas propriedades aos Salesianos, inclusive o Sítio Caldeirão.
Encerrava-se a história do boi "Mansinho" e começava a do beato José Lourenço, que em breve tornar-se-á o beato mais célebre da região do Cariri e liderança indiscutível de uma comunidade camponesa, contando com alguns milhares de trabalhadores pobres.
Na comunidade, a experiência vivida expressou-se em uma experimentação concreta da fé, a materialização de uma nova forma de vida: o trabalho tornou-se um meio para a salvação da alma. A principal testemunha dos acontecimentos do Caldeirão, o Sr. Henrique Ferreira, recentemente falecido, assim descreve o trabalho como penitência da comunidade do Caldeirão. "É os penitentes, é os pobres penitentes, que todo pobre é penitente. O trabalhador é um pobre penitente! Tá na penitência do trabalho!" [1]. Nestas condições, a pobreza da vida tornou-se suportável e até prazeirosa. Foi a partir desta perspectiva religiosa - o trabalho como penitência - , que a comunidade camponesa do Caldeirão se organizou.
O sítio era uma pequena propriedade abandonada, com cerca de 900 hectares no sopé da Serra do Araripe, distante vinte quilômetros do Crato. Encravado entre serras e morros, de acesso extremamente difícil, era lugar ideal para o isolamento. Lá instalados, o beato e seus seguidores deram início aos trabalhos de limpeza dos matos, e construções e reparos de cercas. Construíram a casa do beato e as "primeiras e pequenas casas de taipa e, como a terra era seca, iniciaram também a construção de pequenas barragens nos grotões e socavões dos morros, garantindo assim razoável abastecimento de água para as épocas de secas. Nas terras altas deu-se início à plantação de algodão, milho e feijão. Nas terras baixas, irrigadas por processos primitivos, plantou-se cana-de-açúcar e arroz. Pequena engenhoca levantada nas mediações do pequeno povoado passou a produzir rapadura, batidas e melaço suficiente para o sustento da comunidade." (Cariri, 1982:189).
Construíram ainda a casa de farinha e produziam sabão, a partir de uma planta nativa da região, conhecida por "pingui". Em pouco tempo, o que era uma terra deserta e abandonada transformou-se um pequeno arraial.
Nessa fase inicial, a comunidade trabalhava basicamente na agricultura e na construção de casas em mutirão para os novos moradores. Cada nova família que lá chegava era bem recebida, e os que já viviam no sítio construíam logo a nova moradia; alastravam-se as casinhas a partir do sopé dos morros, formando, gradativamente, um cinturão em redor da pequena planície onde floresciam as primeiras plantações.
A divisão do trabalho era simples: os homens trabalhavam na limpeza dos terrenos, na construção de casas, de caminhos, cercas e na agricultura; enquanto as mulheres, além dos trabalhos caseiros, carregavam água para aguação das plantas, ajudadas pelas crianças maiores. O problema da água será resolvido definitivamente através da construção de dois açudes.
O beato estava sempre à frente de todos os trabalhos e tudo era feito sob a sua orientação. Trabalhava-se das seis da manhã às seis da noite, sob o ritmo dos benditos, puxados pelo beato... A incrível capacidade de trabalho e liderança do beato é atestado por todos, inclusive por aqueles que não nutriam simpatia por ele, como é o caso do tenente Góis de Barros - que comandou a invasão e destruição do sítio em 1936 - , que afirmou espantado em seu "Relatório": "Aliás, faça-se justiça, o espetáculo de organização e rendimento do trabalho, com que nos deparamos ali, era verdadeiramente edificante." (Barros, 1937:31)
Toda a produção e consumo era controlada por Isaías, espécie de "ministro do planejamento e da economia" da comunidade. Os produtos eram armazenados em grandes celeiros e redistribuídos de acordo com as necessidades de cada família. Não circulava dinheiro na comunidade e a organização social era rígida, dentro de padrões de uma religiosidade quase ascética.
Outras pessoas ajudavam o beato José Lourenço na administração da vida da comunidade, destacando-se o papel exercido por Severino Tavares, que apesar de não viver no sítio, exercia o papel de "aliciador" de romeiros para as visitas à comunidade. Seu trabalho como divulgador da vida no Caldeirão muito contribuiu para o aumento da população do sítio, pois muitas pessoas que iam apenas conhecer o beato lá permaneciam...
Com o crescimento populacional do sítio diversificaram-se as atividades produtivas. No meio de tantos trabalhadores que chegavam ao Caldeirão, encontravam-se profissionais das mais diversas especialidades. Organizaram-se então as primeiras oficinas, passando-se a fabricar os mais diversos instrumentos de trabalho e utensílios domésticos. Em pouco tempo a comunidade produzia praticamente tudo o que necessitava para a sua sobrevivência. Apenas o sal e o querosene, assim como remédios, eram comprados pelo beato, com o dinheiro que arrecadava com a venda das rapaduras e algodão.
Paralelamente desenvolveu-se a criação de animais, bovinos, caprinos e suínos, além das mais diversas espécies de galináceos.
Através deste quadro sintético da organização econômica e social da comunidade do Sítio Caldeirão, fácil é perceber que ela formava um vivo contraste em relação à situação dos trabalhadores dos latifúndios do Sertão. Ali reinava a fartura, fruto do trabalho intenso de milhares de pessoas em mutirão - a população sítio alcançou, na fase mais populosa, cerca de duas mil pessoas - , o que duplicava a produtividade do trabalho, fazendo com que os celeiros estivessem sempre cheios. Foi essa fantástica organização do trabalho visando a plena satisfação das necessidades fundamentais da comunidade - que se tornou praticamente auto-suficiente - , que caracterizou a experiência realizada no Sítio Caldeirão pelo beato José Lourenço, e que o transformou em uma ilha de fartura em meio à miséria reinante no Sertão da época. Era uma comunidade pobre, evidentemente, mas bem alimentada material e espiritualmente. A religiosidade popular, que perpassava todos os atos cotidianos da comunidade, tornava suportável a penitência do trabalho e fácil a vida...
As reservas de víveres permitiu que a comunidade sobrevivesse à grande seca de 1932, apesar de o número de habitantes do sítio ter sido acrescido de cerca de 500 pessoas no período. É que o beato abriu as portas do sítio para receber todos os flagelados da seca que lá quisessem entrar e permanecer!
Após a morte do Pe. Cícero, em 1934 - época em que os habitantes do Caldeirão passaram a se vestir todos de preto, em luto perpétuo pelo "santo" do Juazeiro - , grande parte dos romeiros que iam a Juazeiro visitar o túmulo do Patriarca, faziam questão de ir ao Caldeirão, pedir a bênção ao beato José Lourenço. Isto se devia ao fato de José Lourenço representar o único sobrevivente dos "santos" do Juazeiro.
Os romeiros, ao visitarem a comunidade, contribuíam com o desenvolvimento econômico do sítio, pois levavam valiosos presentes, que iram desde cargas de alimentos, animais e até objetos preciosos.
Entretanto, a morte de Pe. Cícero - amigo e protetor do beato - , anunciava também as tempestades que se avizinhavam. O crescimento constante da popularidade do beato, aliada à prosperidade crescente do sítio, despertaram a atenção das elites políticas e religiosas do Crato. Os jornais iniciaram uma campanha contra o beato e sua comunidade: o artigo intitulado "Os fanáticos do Caldeirão", publicado no Jornal "O Povo" afirmava, entre outras coisas: "Dois malandros do Ceará, José Lourenço e Severino Tavares, andam explorando no Vale do Cariri a memória do Padre Cícero" [2]. Para a hierarquia católica, o Caldeirão parecia representar uma ameaça: o beato poderia tornar-se um novo "santo" como o Pe. Cícero... E, neste caso, com o agravante de estar fora do controle da Igreja: seria um novo Antonio Conselheiro!... Assim, alarmados, os proprietários vizinhos e as elites políticas e religiosas atacavam sistematicamente o beato e a sua comunidade: "Setores conservadores ligados à política regional, insuflados pelos proprietários de terras e do clero, encarregam-se de espalhar boatos sobre o beato José Lourenço e os habitantes do Caldeirão. Diziam que o beato oficiava sacramentos reservados ao clero de forma bárbara e sacrílega, que vivia em concubinato com as beatas, possuindo harém de 16 mulheres, que explorava a ignorância e o fanatismo dos camponeses, usando a força de trabalho para enriquecer" [3].
Era, enfim, a orquestração de uma formidável avalanche de inverdades - como a de que o beato, então com 65 anos, tivesse capacidade sexual de manter um harém com 16 concubinas! - , com o objetivo de destruir a experiência comunitária do Caldeirão que, além de atrair trabalhadores de todas as partes, "as relações de produção e consumo tendiam abertamente para o comunismo", na expressão do Tenente Góis de Barros...
Os padres salesianos, herdeiros das terras do Pe. Cícero, decidiram tomar o sítio sem indenizar o beato pelos benefícios lá realizados. Para isto, contrataram o advogado Norões Milfont, deputado da Liga Eleitoral Católica - LEC (de cunho fascista), que passou a defender a causa dos mesmos. O advogado começou a divulgar que o Caldeirão era uma nova Canudos, que o beato José Lourenço possuía armas escondidas e que a comunidade representava uma séria ameaça ao Estado, por ser de franca tendência comunista...
A hierarquia católica confirma: "Nos sermões, os padres falam do perigo do ajuntamento de fanáticos e da infiltração de agentes vermelhos a serviço do totalitarismo ateu. Os beatos chegam aos ouvidos das autoridades estaduais." (Cariri, 1982:195)
Era, enfim, a união da Igreja, do Estado e das elites políticas e latifundiária contra a comunidade camponesa igualitária do sítio Caldeirão...
O advogado dos salesianos, Norões Milfont, não se limitou a espalhar boatos denegrindo a comunidade: para provar suas denúncias e incriminar ainda mais o beato e seus seguidores, enviou um espião ao Caldeirão. A escolha feita, por si só, revela as intenções subjacentes ao ato: decidiu-se enviar "um dos maiores bandido-autoridade de que se teve notícias no Ceará", na expressão de Optato Gueiros (Gueiros, 1952:252). Era o capitão José Gonçalves Bezerra, conhecido na região como um implacável caçador de cangaceiros, sendo, na verdade, um deles, só que escondido por trás da farda policial.
Escolhido o espião, as autoridades iniciaram as investigações. O Tenente José Góis de Campos Barros encarregou-se de comandar a destruição, que descreveu depois no seu "Relatório". Nele afirma que o número de habitantes do Caldeirão havia tomado tamanho vulto que as autoridades locais alertaram o Capitão Cordeiro Neto, Chefe de Polícia, de "certos fatos singulares, que ali estavam passando". Para esclarecer os "fatos", foi ao sítio o Capitão José Bezerra, disfarçado em industrial interessado nas possibilidades econômicas da região, em relação à indústria de oiticica.
Admitido na residência do beato, o Capitão Bezerra tudo observou, especialmente as riquezas acumuladas no sítio, fruto do trabalho sistemático da comunidade, o que logo lhe despertou o interesse... No seu relatório, refere-se à existência de "uma nova Canudos, coito de fanáticos e do terrível perigo comunista" (Barros, 1937:30), e conclui solicitando urgente intervenção.
Depois das investigações realizadas pelo Capitão José Bezerra, o interventor e Governador do Estado, Menezes Pimentel, reuniu o advogado dos salesianos Norões Milfont, o Bispo do Crato, D. Francisco de Assis Pires, Andrade Furtado, Martins Rodrigues, o Capitão Cordeiro Neto, Chefe de Polícia, e o Delegado do DEOPS, o Tenente José Góis de Campos Barros. Com exceção dos dois militares, todos os outros pertenciam à LEC. Decidiu-se pela intervenção.
O Tenente José Góis de Campos Barros comandou a expedição, no mês de setembro de 1936. O beato José Lourenço conseguiu fugir, escondendo-se na Serra do Araripe, acompanhado de algumas famílias. Em meio a todo tipo de violências, inclusive estupros, os militares atearam fogo em todas as casas, expulsaram os moradores, destruíram e saquearam o sítio...
O Tenente José Góis, em seu relato, diz que após juntar todos os habitantes, explicou a eles para que viera: acabar com a comunidade, porque "o Estado não podia permitir aquele ajuntamento perigoso". As ordens eram que cada família juntasse seus pertences e voltassem para os seus locais de origem. Ofereceu passagens de trem e de navio, que foram unanimemente rejeitadas: "E, fato singular, ninguém tinha bens a conduzir. Tudo o que ali estava, diziam, era de todos, mas não tinha dono." (Id.:25)
O beato José Lourenço continuou por algum tempo refugiado na Serra do Araripe. Severino Tavares e seu filho Eleutério foram presos em Fortaleza. A imprensa da época calculou que, após a destruição do sítio, pelo menos mil pessoas foram juntar-se ao beato José Lourenço na Serra.
Entrementes, Severino Tavares e seu filho foram soltos da prisão e dirigiram-se para a Serra do Araripe. Enquanto o beato José Lourenço ganhava tempo para iniciar negociações visando voltar para o sítio, Severino Tavares planejava vingança... (Afirma-se que uma das moças estupradas pelo Capitão Bezerra era sua filha...).
Os jornais começam a publicar notícias alarmantes, informando que os beatos ameaçavam invadir fazendas e a feira do Crato. Segue uma patrulha comandada pelo Capitão José Bezerra para debelar os "fanáticos". Severino Tavares montou uma emboscada com alguns seguidores e, em luta corpo a corpo com a patrulha, morreram o Capitão, um filho seu e o próprio Severino Tavares, além de outros soldados e camponeses.
Seguiu-se o bombardeio na Serra, quando três aviões, comandados pelo Capitão José Macedo, autorizado pelo Ministro da Guerra, General Eurico Gaspar Dutra, conduzindo bombas, metralhadoras e grande quantidade de munições, metralharam e bombardearam os agrupamentos de camponeses oriundos do Caldeirão... Por terra, atacavam as forças policiais. O Capitão Cordeiro Neto avaliou a chacina em cerca de duzentos mortos, enquanto outras fontes orais afirmam que o número de mortes teria atingido uma cifra bem maior: entre 700 a 1.000 pessoas...
O beato José Lourenço escapou do bombardeio na Serra. Após muitas negociações, conseguiu voltar ao sítio Caldeirão, em 1938. Lá passou mais um ano, trabalhando e reconstruindo o sítio, junto com umas poucas famílias de camponeses (o acordo não permitia mais "ajuntamentos"). No final do ano, quando já reorganizara a produção no sítio, foi novamente expulso pelos salesianos. Na ocasião, o Sr. Júlio Macedo conseguiu junto ao Juiz de Direito do Crato a devolução do dinheiro que fora entregue ao Juizado por ocasião do leilão do que restava dos bens do sítio, após a destruição e saque do mesmo. De posse de pequena quantia, o beato ainda conseguiu adquirir uma pequena propriedade no município de Exu, em Pernambuco. Lá, no sítio que denominou de União, o beato, acompanhado de umas poucas famílias, viveu em paz durante oito anos. Morreu no dia 12 de fevereiro de 1946, vitimado pela peste bubônica...
Seu corpo foi transportado através da Chapada do Araripe, pelos seus fiéis seguidores, até o Juazeiro... O que o beato não sabia era a recepção que o seu corpo teria na Igreja: levado para uma capela onde seria realizada a missa de corpo presente, o padre, na última condenação da Igreja ao beato, negou-se a cumprir o ritual..
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Notas
[1] Henrique Ferreira, entrevista ao autor, 12/07/1983 [2] Jornal "O Povo", Fortaleza-CE,02/03/1935 [3] Idem, Idem
Bibliografia
ALVES, Tarcísio Marcos. A Santa Cruz do deserto. -Ideologia e protesto popular no sertão nordestino: A comunidade camponesa igualitária do Caldeirão. (Dissertação -Mestrado em História-UFPE, 1994.) BARROS, Ten. José Gois de Campos. (1937). A Ordem dos Penitentes. Imprensa Oficial. Fortaleza. CARIRY, Rosemberg. (1982). "O Beato José Lourenço e o Caldeirão de Santa Cruz". In Revista Itaytera. Crato, nº 26, pp. 189-199. CAVA, Ralph Della. (1976). Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra. COSTA, Floro Bartholomeu da. (1923). O Padre Cícero do Juazeiro - Depoimento para a História. Rio de Janeiro. Anais da Câmara dos Deputados Federais, v. 07 - Sessão de 13 de setembro de 1923, pp. 711-712. GUEIROS, Optato. (1952). Lampeão: Memória de um oficial ex-comandante de forças volantes. Recife. LEVINE, Robert M. (1980). O Regime de Vargas - Os anos críticos 1934-1938. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, (nota 15). ________________. (1995). O Sertão Prometido - O massacre de Canudos. São Paulo, EDUSP. Jornal "O Povo"- Fortaleza – Ce, 02-02-1935.
Recife, janeiro de 2000.
* Tarcísio Marcos Alves - Mestre em História (UFPE) e doutorando em História (UFPE). Pesquisador sobre religião popular no sertão nordestino e professor da UFPE.

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